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Perspectivas da Bioenergia no Brasil - Máxima Cogeração nas Usinas de Cana STAB - Out/Nov/Dez 2024

Nós humanos estamos nos tornando cada vez mais energívoros, e a pegada de carbono só aumentando!

Entendemos a energia como algo que necessitamos para mudar o estado das coisas. Deixar quente uma coisa que está fria, ou resfriar uma coisa que está quente. Mudar o estado de um material de líquido para gasoso, ou de líquido para sólido. Por em movimento um objeto que está parado, ou mudar a trajetória de um objeto que está em movimento. Girar eixos de equipamentos que geram a energia elétrica indispensável num CPD de IA. Estes exemplos banais servem para indicar que a energia tem diversas formas.

O conceito de cogeração é a produção simultânea e de forma sequenciada de duas ou mais formas de energia a partir de um único combustível. O processo mais comum é a produção de energia mecânica (e/ou elétrica) e de energia térmica (calor e/ou frio). Os processos de cogeração são indispensáveis para a redução da pegada de carbono, pois a geração simultânea de dois ou mais tipos de energia permite a utilização mais eficaz da fonte de energia, seja ela de combustível fóssil ou renovável.

O objetivo deste texto é destacar a importância da máxima cogeração na moagem de cana no contexto das perspectivas da bioenergia no Brasil.

Formalmente o processamento de cana de açúcar responde por cerca de 60% de toda a energia elétrica gerada por sistemas de cogeração no Brasil. Mas na realidade apenas uma parcela da energia elétrica exportada pelas usinas é gerada em processos de cogeração.

Tipicamente, em uma usina eletrificada com ciclo termodinâmico utilizando vapor motriz com 525 oC, temos:

- Consumo interno de energia elétrica em cogeração: ~ 30 kWh/tc (31% do vapor motriz)

- Exportação de energia elétrica em cogeração: ~ 40 kWh/tc (42% do vapor motriz)

- Exportação de energia elétrica em geração pura (condensação): ~ 30 kWh/tc (27% do vapor motriz)

Na vida real, pelo menos um quarto do bagaço da usina não está sendo utilizado em sistema de cogeração.

O exemplo acima considerou um consumo de vapor de processo na faixa de 40% da cana (VE 400 kg/tc), valor que tem sido adotado na prática dos projetos, já que os preços de venda da energia elétrica não têm justificado investimentos no ciclo de geração pura para aumentar a exportação de energia elétrica (vide texto da Revista STAB da edição abril/maio/junho de 2021 - Exportação de Energia Elétrica x Consumo de Energia Térmica). Mas além de não haver retorno econômico quando reduzimos o consumo de energia térmica no processamento da cana, temos o paradoxo técnico de que quanto mais reduzimos o consumo de vapor de processo, menos bagaço é utilizado no sistema de cogeração. Ou seja, a recuperação global da energia potencial do combustível bagaço diminui, aumentando a pegada de carbono.

Assim, temos o potencial típico de 70 kWh/tc de exportação de energia sem palha adicional, sendo 57% em cogeração e 43% em geração pura, sendo este último um ciclo termodinâmico de baixa eficiência (25% a 30%).

Na safra de 2023/24 houve recorde de exportação de bioeletricidade no Brasil, mas atingimos uma exportação específica de apenas 33,5 kWh/tc, ou seja, estamos desperdiçando cerca de metade do nosso potencial, que poderia ainda ser aumentado com uso de palha adicional.

Este é o dilema. Temos um enorme potencial técnico para reduzir a nossa pegada de carbono, mas os preços de energia elétrica no Brasil, distorcidos em função dos pesados subsídios adotados para a viabilização das fontes intermitentes solar e eólica, não remuneram os investimentos para aumentar a exportação de energia elétrica a partir de bagaço, de palha ou de biogás.

A solução do dilema pode vir através do uso do bagaço excedente em sistemas de cogeração. As plantas que produzem suco de laranja praticam esta solução há décadas. Compram bagaço excedente das usinas pelo seu preço de oportunidade, ou seja, pelo valor da energia elétrica que poderia ser exportada em um ciclo de geração pura, porém queimam o bagaço em ciclos de cogeração, gerando a energia térmica necessária para a evaporação do suco e a energia elétrica para operar a planta. Para o comprador de bagaço, um bom negócio!

Mas a boa notícia é que no Brasil o milho e o biogás poderão vir a ser importantes vetores do aumento da eficiência energética da cana e, por consequência, de uma considerável redução da sua pegada de carbono.

Como mencionado acima, não tem resultado econômico baixarmos o consumo de vapor de processo na usina para exportar mais energia elétrica. Muito menos instalar caldeiras mais eficientes com a mesma finalidade.

Mas pode fazer sentido econômico instalarmos caldeiras mais eficientes com vapor de média pressão, na faixa de 42 bar, considerando que a máxima geração de energia elétrica deixaria de ser prioridade, para processar milho utilizando 100% do bagaço em sistemas de cogeração com o máximo aproveitamento de energia térmica.

Para o processamento de milho visando a produção de etanol anidro, dependendo do processo adotado e dos subprodutos considerados, tipicamente necessitamos de 1.200 a 1.500 kg/tm de vapor de processo (na cana 380 a 420 kg/tc) e de 80 a 100 kWh/tm (na cana 30 a 35 kWh/tc em usinas eletrificadas).

O milho é uma commodity e, com apenas ~15% de umidade, pode ser transportado em maiores distâncias e ser armazenado para ser processado durante todo o ano. Naturalmente o preço e a logística do milho e do DDGS são os fatores econômicos mais relevantes para o retorno econômico do projeto, mas o terceiro fator de maior importância é o custo da energia térmica e elétrica para a operação da planta.

Usinas de cana operando com caldeiras eficientes gerando vapor de média pressão e com consumo de vapor de processo na faixa de 38%, tem superávit energético para processar milho na relação 5:1, ou seja, para cada 5 t de cana processadas durante 8 meses há bagaço excedente suficiente para processar 1 t de milho durante 11 meses.

Esta relação 5:1 é aproximada e depende do teor de fibra da cana, valendo para extração com moendas, pois extração com difusor necessita de mais vapor de processo. Deve ser estimada em cada caso particular, podendo ser um pouco maior ou menor. Neste caso, quanto menor a relação, melhor!

Por outro lado, trazer alguma palha adicional do campo poderia passar a ter retorno econômico interessante, pois a palha também seria usada em um sistema de cogeração e em caldeiras gerando vapor motriz com temperatura mais baixa.

E a relação 5:1 poderia ser melhorada se utilizarmos também o biogás em sistema de cogeração, já que o uso de biogás exclusivamente para exportação de energia elétrica não tem retorno econômico satisfatório (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2021 - Cogeração na Usinas com Biogás).

Mas mesmo mantida a relação 5:1, com cana produzimos de 80 a 85 l/tc de etanol e com milho produzimos de 400 a 420 l/tm, ou seja, esta relação permite dobrar a produção de etanol de uma safra de cana. Obviamente não será mais possível exportar 70 kWh/tc, mas será possível exportar de 45 a 50 kWh/tc, um acréscimo na faixa de 30% em relação à exportação média de hoje acima relatada.

E para melhorar a relação cana/milho no futuro, poderemos vir a ter incentivos econômicos para adotar novas tecnologias visando a redução de consumo de VE na produção de etanol de cana, como por exemplo a adoção de destilação sob vácuo (vide texto da Revista STAB da edição novembro/dezembro de 2019 - Destilação sob Vácuo para Economizar Vapor).

Resta a questão da demanda de mercado para toda esta produção adicional de etanol anidro. Acreditamos que além dos veículos com motores flex e híbridos deverá haver demanda adicional para a produção local de SAF, pois na aviação doméstica o Brasil é o terceiro mercado mundial, e para o transporte e/ou produção de HBC (vide texto da Revista STAB da edição abril/maio/junho de 2024 - Hidrogênio de Baixo Carbono - Rotas de Produção).

Considerando os aspectos disponibilidade, qualidade, transporte e armazenamento, constatamos que as fontes de Energia Fóssil são uma concorrente de respeito para as fontes de Energia Renovável. Não é fácil competir.

Num país tão grande e diversificado como o Brasil, os agentes públicos devem promover políticas para melhorar as condições de competição das fontes renováveis por meio de soluções sistêmicas, eventualmente de cunho regional, que promovam o aumento da complementariedade e a redução da concorrência entre as fontes renováveis.

Sistemas de cogeração com energia fóssil favorecem a redução da pegada de carbono, porém sistemas de cogeração com energia renovável favorecem muito mais!

O processamento simultâneo de cana e de milho com sistemas de cogeração, com a eventual inclusão de palha adicional e/ou de biogás, é um caso de complementariedade entre fontes renováveis que muitos poucos países além do Brasil podem dispor.

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br