Flexibilidade, Eficiência, Preço Líquido da Cana
O tema do texto de hoje é decorrência da decisão estratégica de um cliente nosso no projeto conceitual de um sistema de cogeração de energia elétrica em uma unidade industrial, a qual estava em processo de ampliação da sua capacidade de moagem de cana de açúcar.
O cliente em questão decidiu pelo dimensionamento dos equipamentos principais da Usina Termo Elétrica (UTE), ou seja, caldeiras e turbo geradores, visando a máxima exportação de energia elétrica por tonelada de cana processada.
Trata-se de uma decisão estratégica de negócios que devemos naturalmente respeitar, mas como estamos falando do setor da agro indústria, há uma série de aspectos que merecem ser discutidos.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que caldeiras e turbo geradores são equipamentos industriais que, como a grande maioria de todos os equipamentos, podem operar com máxima eficiência somente em condições específicas de regime de operação.
É freqüente, por exemplo, ouvirmos que os carros flex brasileiros poderiam ser mais eficientes no consumo de combustível. Tudo bem, mas como projetar um motor eficiente que possa usar 100% de gasolina contendo 25% de etanol anidro (às vezes 20%!) ou 100% de etanol hidratado ou qualquer mistura entre os dois? Impossível com tamanha flexibilidade! Flexibilidade e eficiência são conflitantes. É preciso assim fazer as nossas escolhas.
Voltando ao caso de UTE em questão, as turbinas a vapor de contrapressão e de condensação foram selecionadas pelo fabricante no seu ponto de máxima carga, que é normalmente o ponto de operação de máxima eficiência, principalmente para as turbinas de contrapressão.
As turbinas de contrapressão podem ter uma redução significativa de eficiência com carga mais baixa. Adicionalmente, quando estas turbinas incorporam um sistema de extração controlada de vapor para o processo, a eficiência da máquina pode também ser afetada. Tipicamente, a eficiência da turbina é tanto mais afetada quanto maior for a faixa de vazão de extração controlada de vapor.
Já as turbinas de condensação têm a sua eficiência menos afetada com carga baixa, pois como a capacidade do condensador é constante, se mantivermos a vazão de água de resfriamento no condensador para máxima carga, será teoricamente possível operar com uma pressão de condensação mais baixa do que a nominal, compensando em parte a perda de eficiência pela redução de carga. Para estas máquinas vale também o comentário sobre a faixa de vazão de extração controlada.
Durante a seleção das turbinas é indispensável considerar que os fabricantes geralmente indicam consumos específicos de vapor com carga máxima. Analisar a curva de performance dos equipamentos em várias condições de operação é mandatório para se calcular com precisão a energia elétrica gerada.
Caldeiras podem ser dimensionadas para operar com alta eficiência em carga mais baixa, porém é preciso estar atento para a garantia da temperatura do vapor a baixa carga. O consumo específico de uma turbina depende mais da temperatura do que da pressão do vapor vivo. Se a temperatura do vapor cai com carga baixa na caldeira, a eficiência do ciclo termodinâmico fica comprometida.
Quando desenvolvemos o projeto conceitual de uma UTE a partir de bagaço de cana, temos que combinar os ciclos de contrapressão e de condensação. O ciclo de contrapressão deve garantir o vapor de processo para a planta.
Trabalhamos com cana, uma matéria prima perecível cujas características básicas variam muito durante uma safra. Teores de fibra diferentes podem resultar em ritmos de moagem diferentes. Teores de açúcar diferentes podem resultar em faixas de embebição diferentes. Condições climáticas podem afetar todo o ritmo da produção.
Se não bastassem as variações referentes à qualidade e ao ritmo de entrega da matéria prima, existem as variáveis de mercado que definem quais produtos finais devem ser privilegiados. Açúcar VHP ou branco? Etanol hidratado ou anidro?
Todas estas variações tornam recomendável termos uma certa flexibilidade na vazão de vapor disponível para o processo, o que conflita com a condição de máxima eficiência das turbinas.
Temos recebido no nosso setor novas empresas com diferentes culturas, que não operam com matéria prima tão variável em quantidade e em qualidade, e que não concordam com uma certa flexibilidade no dimensionamento dos equipamentos, o que é uma necessidade inerente ao setor agro industrial.
A nosso ver dispor de flexibilidade para processar a matéria prima cana com a máxima eficiência é absolutamente indispensável.
No caso de venda de energia elétrica excedente existe sempre o argumento de tratar-se de uma operação com excelente margem de resultado operacional. Portanto é indispensável maximizar a eficiência desta operação.
É verdade, mas também é verdade que a venda de energia elétrica em condições normais de preço representa no máximo de 10% a 15% do faturamento total da indústria.
Por outro lado, em qualquer sistema de cogeração no qual produzimos simultaneamente energia térmica e energia elétrica, é absolutamente impossível chegar a um consenso sobre qual é o custo de produção da energia térmica e da energia elétrica. A discussão não acaba nunca, e os valores adotados são sempre muito mais políticos do que técnicos.
Usamos o mesmo combustível para usar os dois tipos de energia. A turbina de condensação produz somente energia elétrica, mas utiliza o vapor de uma caldeira que opera também para o processo. A turbina de contrapressão gera os dois tipos de energia, como ratear os seus custos?
Como dividir os custos do pessoal de operação e de manutenção? Como dividir os custos para tratamento de água da caldeira? Quanto vale a tonelada de bagaço? São perguntas sem resposta definitiva.
A nossa sugestão, para quem precisa avaliar qual o real impacto da venda de energia elétrica sobre o resultado global da operação da indústria incluindo a produção de açúcar e de etanol, é utilizar a prática adotada por outros setores da agro indústria para plantas que produzem um produto final principal e diversos outros sub-produtos.
Tomemos por exemplo o caso de plantas que processam milho visando a produção de amido. Estas plantas produzem, além do amido, inúmeros outros sub-produtos tais como óleo vegetal, farelo, etc.
Eles usam o conceito assim denominado “Preço Líquido do Milho”. Em vez de intermináveis discussões para determinar o custo de produção de cada sub-produto que geralmente não vão chegar a nenhum consenso, eles descontam do preço da matéria prima o valor da venda líquida de cada sub-produto.
Apenas para exemplificar, se uma tonelada de milho após processamento produzir 30% de farelo que é vendido com preço equivalente a 50% do preço do milho, então o preço líquido do milho cai 15%.
Voltando com um exemplo no caso da cana, se uma usina exporta 50 kW.h/tc a um preço líquido médio de R$ 150,00 por MW.h, então podemos reduzir em R$ 7,50 o “Preço Líquido da Cana”.
Vamos supor que para garantir uma máxima flexibilidade do processamento da cana temos que perder 10% da eficiência do sistema de cogeração, exportando assim 45 kW.h/tc. Nesta situação podemos reduzir em R$ 6,75 o “Preço Líquido da Cana”.
Desta maneira a pergunta importante a responder no exemplo acima, naturalmente levando em conta as especificidades de cada caso, é a seguinte: você pagaria R$ 0,75 a mais no “Preço Líquido da Cana” para poder operar a sua usina com maior flexibilidade? Uma adequada análise de sensibilidade dos diversos parâmetros envolvidos vai ajudar na resposta.