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O Sistema Elétrico Brasileiro Gerou um Algorítimo Implausível STAB - Out/Nov/Dez 2023

Fomos contratados recentemente por uma usina para desenvolver um trabalho de consultoria, cuja entrega principal foi um Algoritmo para simular a operação de uma válvula condicionadora de vapor (VCV) funcionando na prática como se fora um gerador de vapor de processo, ou seja, como uma “caldeira produzindo vapor de escape (VE)”.

No início do projeto e na nossa avaliação preliminar, as informações técnicas fornecidas pelo Cliente durante a kickoff meeting (KOM) eram muito implausíveis. Implausíveis porque durante décadas selecionamos, especificamos e desenvolvemos projetos de instalação de dezenas de VCV’s, sempre com a premissa de que tais equipamentos devem permanecer a maior parte do tempo fora de operação, ou seja, com a válvula fechada (vide texto da Revista STAB da edição setembro/outubro de 2008 - Válvulas Condicionadoras para Vapor Motriz). E de repente, nesta KOM, o Cliente queria nos convencer de que podia gerar mais receita para a usina operando com a válvula condicionadora aberta e rebaixando a maior parte da vazão de vapor motriz (VM).

Mas no final do trabalho ficamos convencidos de que o Cliente tinha razão, pelo menos no caso de alguns cenários, em função das condições específicas do seu contrato de venda de energia e em função das disparidades que ocorrem no Sistema Elétrico Brasileiro (SEB).

O contrato desta usina prevê a exportação de potência elétrica, ou seja, despacho para o ONS, inclusive na entressafra, e eventual fornecimento de energia elétrica adicional durante a safra quando houvesse disponibilidade de combustível. Neste tipo de contrato, a usina recebe um valor fixo por MWh quando não está despachada e um preço adicional a este valor fixo correspondente ao Custo Variável Unitário (CVU) quando está despachada. Quando há sobra de combustível (bagaço), o preço da energia adicional gerada precisa ser negociado no mercado spot, o qual depende do valor do Preço de Liquidação de Diferenças (PLD). O PLD é o resultado de um cálculo que determina os valores de toda a energia elétrica que foi produzida, mas que não foi contratada pelos agentes de mercado, num determinado período.

Quando o Cliente nos contratou o valor do PLD estava num patamar muito baixo, na faixa de R$ 70/MWh, criando assim um dilema sobre como operar a usina e a UTE durante a safra quando não há despacho para o ONS. O consumo de VE no processo determina a produção necessária de VM na caldeira, mas se admitimos todo este VM no turbo gerador podemos estar exportando energia elétrica com um preço gravoso e consumindo uma quantidade adicional de bagaço que poderia ser armazenado para a entressafra ou ser vendido para terceiros.

Para este tipo de cenário, quando o bagaço excedente tem preço atrativo e o PLD tem preço muito baixo, o Cliente nos convenceu que obtém maior receita anual passando durante a safra no turbo gerador VM para gerar apenas a energia consumida na usina e na UTE. A maior parte do VM então pode passar pela VCV que “produz” mais VE em função da admissão de água para o necessário resfriamento do VM. Desta maneira, processamos a cana gerando menos VM e, portanto, com menor consumo de bagaço por tonelada de cana processada.

Ressaltamos no nosso relatório que esta condição operacional é muito específica e que o fabricante da VCV deveria ser consultado para ajustes e/ou adequações no sistema de rebaixamento de VM, inclusive com eventual instalação de equipamentos stand by.

E desta maneira desenvolvemos para o nosso Cliente o Algoritmo Implausível do título deste texto, o qual, em função da produção de cana, do teor de fibra na cana, do consumo de VE no processo, do preço de compra e/ou venda de bagaço, do preço compra de cavaco e do valor do PLD, determina se a VCV deve operar fechada ou aberta durante a safra, visando gerar maior receita anual em função da variação e/ou previsão dos preços do mercado.

Importante ressaltar que, do ponto de vista da eficiência energética da UTE, operar com a VCV aberta é um disparate técnico. Gastamos energia para gerar VM com alta pressão e alta temperatura e depois rebaixamos a pressão e a temperatura do mesmo para gerar mais VE, com muito consumo de energia elétrica parasita e com perdas termodinâmicas neste processo. É muito mais eficiente e muito mais racional para o país utilizarmos este bagaço no sistema de cogeração da usina e exportar a energia elétrica excedente durante a safra, com o objetivo de aumentar a capacidade dos reservatórios da UHE’s (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2022 - Natureza das Fontes de Energia Renovável - Serviços Ancilares).

Mas este disparate técnico ficou economicamente viável no cenário indicado acima em função das disparidades que ocorrem no SEB, conforme mencionamos no início deste texto. Uma destas disparidades é justamente o sistema de cálculo adotado para a determinação do PLD, o qual é altamente dependente de variações pontuais do ENA, Energia Natural Afluente, indicado em MWmês. As inúmeras associações que fazem parte do Fórum das Associações do Setor Elétrico (FASE) são unânimes na conclusão de que este sistema de cálculo do PLD deve ser revisado, para que as outras fontes geradoras despacháveis não sejam afetadas pelo baixo custo pontual da geração hidroelétrica. Mas na prática nada tem acontecido com relação ao cálculo do PLD.

Outra disparidade que ocorre no SEB diz respeito ao crescimento acelerado das fontes renováveis intermitentes, notadamente eólica e solar, que entregam energia, mas não garantem a entrega de potência com a confiabilidade e a qualidade das outras fontes despacháveis, como ficou demonstrado na ocorrência do apagão do dia 15/08/23. Naquele dia as fontes eólica e solar estavam entregando energia próxima da sua capacidade nominal, e assim sem folga para atender possíveis variações de carga no sistema. Tanto que nos dias subsequentes o ONS tomou a correta decisão de passar a utilizar estas duas fontes com cerca de 30% de folga em relação à sua capacidade nominal.   

Estas duas fontes podem praticar preços mais baixos porque na vida real os serviços ancilares correspondentes à energia intermitente entregue estão sendo prestados por terceiros, como as UHE’s e as UTE’s. Esta situação anômala caracteriza a existência de subsídios cruzados, os consumidores desta energia intermitente pagam um preço mais baixo e toda a sociedade paga pelos serviços ancilares correspondentes, com a garantia de fornecimento da potência, ou seja, energia ativa em kW com qualidade.

Outro exemplo típico de subsídios cruzados é o caso dos compensadores síncronos, que deveriam fazer parte dos investimentos dos parques eólicos e solares, mas que foram sub-repticiamente incluídos nos leilões das linhas transmissão de energia, num trabalho de lobby que favorece os dois setores, mas prejudica o SEB, já que sistemas de transmissão de energia não necessitam deste tipo de equipamentos, aliás muito custosos.

O fato de que as energias eólica e solar estão com preços artificialmente baixos deve alertar a sociedade a respeito de outro lobby danoso para o Brasil, aquele do hidrogênio verde (HV). Não custa lembrar que eletricidade e hidrogênio não são formas primárias de energia, eles não existem na Natureza. Para serem produzidos vão necessitar de muita energia, notadamente o HV. O lobby do HV propõe usar energia eólica e solar barata para produzi-lo por meio de eletrólise, um processo que consome muita energia elétrica.

Trata-se assim de outro disparate técnico e econômico, vender para os países do Hemisfério Norte o HV produzido aqui a partir de eletricidade com preço baixo, o qual está sendo subsidiado por toda a sociedade brasileira (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2023 - Energia Renovável do Brasil: Nortear ou Orientar?).

Mas felizmente ainda há esperança de que os fundamentos possam voltar a ser levados em conta pelos nossos legisladores sérios. Um fato levante é o PL (Projeto de Lei) 5158/2023 que institui a Política de Criação e Operação de Reservatórios de Regularização e Acumulação de Água. O PL tem por objetivo “contribuir com as políticas públicas de uso múltiplo, regular as vazões naturais das bacias, contribuindo para a segurança do SEB e o controle de cheias”. É evidente que os reservatórios de regularização e de acumulação também visam uma matriz energética mais limpa, mais estável e com tarifas menores.

É gratificante notar que o setor hidroelétrico brasileiro pode voltar a ser reconhecido pela sua importância como fonte de energia limpa, depois de estar sendo demonizado nos últimos 20 anos por setores ambientalistas extremados e tecnicamente despreparados, e que não conseguem enxergar a indispensável complementariedade que deve existir entre as diversas fontes de energia renovável disponíveis no Brasil.

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br