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Natureza das Fontes de Energia Renovável - Serviços Ancilares STAB - Jul/Ago/Set 2022

No mês de abril passado, o MME publicou o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) 2031, um documento que visa delinear as perspectivas de investimentos e de avanços no setor energético do Brasil para o decênio entre 2021 e 2031.

Trata-se de um calhamaço de mais de 400 páginas, que inclui a energia prevista para o transporte de carga e para a mobilidade das pessoas, mas o nosso objetivo neste texto é focar apenas na Matriz Elétrica, ou seja, comparar neste último aspecto o cenário vigente em 2021 com o cenário previsto no PDE para 2031.

De uma maneira contra intuitiva para os tempos em que vivemos, o PDE indica que as energias renováveis passam de 86,0% para 82,4% do total da Matriz Elétrica. Já as energias não renováveis passam respectivamente de 14,0% para 17,6%, crescendo 25,7% contra um recuo de 4,2% das renováveis!

Mais especificamente, as biomassas e biogás descem de 7,9% para 7,2% e as hidroelétricas em geral descem de 60,7% para 53,3%. Já a solar centralizada (sem contar a MMDG) sobe de 2,5% para 4,7% e a eólica sobe de 10,9% para 13,8%.

Entre as não renováveis, a participação do Gás Natural (GN) tem previsão de passar de 8,8% para 14,6%, um considerável acréscimo de 65,9%. Como explicar este paradoxo no Brasil, país que tem uma matriz energética das mais renováveis no mundo e que está investindo maciçamente em energia solar e eólica?

A resposta está na natureza das diversas fontes de energia renovável, que podem ser caracterizadas como intermitentes (eólica e fotovoltaica), sazonais (biomassas provenientes do processamento da cana e UHE’s, considerando a sazonalidade da sua potência despachável) ou permanentes (licor negro da indústria de celulose/papel e UTE com cavaco de madeira). Naturalmente s exemplos mencionados são os mais relevantes, mas não excluem as inúmeras outras fontes de energia renovável que também têm as suas características específicas.

Já as fontes de energia fóssil são concorrentes respeitáveis, pela sua natureza de permanente, pela sua alta densidade energética, pela possibilidade de estocagem sem degradação e pelo seu baixo custo quando bem utilizadas em ciclos termodinâmicos eficientes. Por estas razões, as energias renováveis devem ser sempre tratadas como complementares e não como concorrentes, para aumentar a sua competitividade em relação às energias fósseis.

Por sua natureza, fontes intermitentes demandam sistemas de armazenamento de energia. A energia que deve ser armazenada pode ser gerada de fonte renovável ou fóssil. O PDE 2031 está considerando utilizar o GN, energia armazenada de fonte fóssil. É importante destacar que quando o GN é utilizado para compensar as intermitências de outras fontes, o seu custo torna-se muito mais alto em função da operação da UTE em ciclo termodinâmico aberto, pois não é possível operar a UTE em ciclo termodinâmico combinado quando há variação sistemática da carga. A eficiência do ciclo aberto é muito menor do que a do ciclo combinado, aumentando muito o consumo de GN e por consequência o preço da energia gerada.

Felizmente no Brasil temos a possibilidade de armazenar energia renovável utilizando os reservatórios das UHE’s, que podem ser considerados como baterias de água gigantescas. Em 2021 tivemos o pior cenário de nível dos reservatórios em 90 anos de registros, mais um aviso para cuidarmos melhor da nossa reserva de água.

O parâmetro que pode ser utilizado para avaliar o potencial energético dos reservatórios das UHE’s é o ENA, Energia Natural Afluente, indicado em MWmês. Os reservatórios do Brasil, quando cheios totalmente, acumulam aproximadamente 291.000 MWmês. Isto significa que sem chuva e sem afluência nas nascentes, os reservatórios garantiriam uma carga de 291.000 MW durante um mês típico, que na média tem 730h.

Como a carga média do SIN (Sistema Interligado Nacional) do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) é de cerca de 70.740 MW médios, os reservatórios teriam capacidade para aproximadamente 4,1 meses de consumo, já considerando o volume morto dos mesmos. Há 30 anos esta capacidade correspondia a 12 meses, a qual foi diminuindo progressivamente com o aumento da carga e com as inadequadas restrições ambientais para a construção de novas UHE’s. As críticas dos ambientalistas aos reservatórios acabaram demonizando a energia hidroelétrica, uma fonte renovável que gera a energia mais barata que conhecemos.

Por outro lado, na região Centro-Sul do Brasil, praticamente toda a geração de energia elétrica por meio das biomassas decorrentes do processamento da cana, o bagaço, a palha e mais recentemente o biogás, ocorre no período seco que coincide justamente com o menor ENA nos reservatórios.

O potencial de exportação de energia elétrica do bagaço depende da quantidade de combustível disponível, expresso pelo teor médio de fibra na cana em cada safra, e depende do ciclo termodinâmico que é utilizado, definido pelo par pressão/temperatura do vapor motriz e pela quantidade de energia térmica utilizada no processo. No Brasil, o vapor motriz mais utilizado é o par 68 bar(a)/525oC e a energia térmica típica corresponde a 400 kg/tc de vapor de escape (40% da cana). Com este ciclo termodinâmico e 13,0% de fibra média na cana é possível exportar cerca de 70 kWh/tc a partir do bagaço.

O potencial de exportação de energia elétrica da palha enfardada com 35% de umidade corresponde a aproximadamente 700 kWh/t de palha, utilizando um ciclo termodinâmico de geração pura com uma baixa eficiência termodinâmica, na faixa de 25%. Considerando que metade da palha seria retirada do campo, a exportação corresponderia aos mesmos 70 kWh/tc, dobrando assim a exportação do bagaço.

O potencial de exportação de energia elétrica do biogás varia de 15 kWh/tc, utilizando vinhaça com fonte de DQO, até 20 kWh/tc quando acrescentamos a torta de filtro com fonte de DQO.

Chegamos assim a um valor teórico potencial de 160 kWh/tc, lembrando que na safra de 2020 a exportação de energia elétrica a partir da cana, que correspondeu a cerca de 82% de todas as biomassas, esteve na faixa de apenas 35 kWh/tc.

Por uma série de razões, não é razoável supor que todo este potencial poderá ser atingido sem percalços, já que trazer palha enfardada do campo tem um custo elevado e esta matéria prima eventualmente será utilizada para a produção de etanol 2G. A produção de biogás depende de economia de escala e a torta de filtro eventualmente continuará a ser utilizada como adubo. Várias usinas existentes têm escala de capacidade pequena, cuja produção anual de cana não garante o retorno adequado dos investimentos necessários em novos equipamentos, tais como caldeiras, turbo geradores, biodigestores e moto geradores.

Com uma hipótese mais conservadora de que 2/3 deste potencial poderia ser atingido, chegamos ao valor aproximado de 100 kWh/tc de exportação, que corresponde a 60 TWh para uma moagem de 600 milhões t de cana, energia firme (potência) que seria ofertada majoritariamente entre abril e novembro, conforme indicado na Figura 1, que nos foi cedida pelo eng. Luiz Otávio Koblitz.

A curva na cor verde indica a potência firme ofertada ao MRE pelas diversas fontes de biomassa, sendo que as usinas de cana durante a safra de 2020 representaram cerca de 82% da potência total. A sigla MRE significa Mecanismo de Realocação de Energia, do qual participam todas as UHE’s e a grande maioria das PCH’s, com o objetivo de usar a energia das hidroelétricas como fonte reguladora da variação da carga do SIN, seja por alterações na demanda, seja por alterações na geração das fontes renováveis intermitentes.

As curvas nas cores azul e vermelho indicam o valor do ENA armazenável. A curva azul indica os valores MLT (Média de Longo Termo), já a curva vermelha indica os valores de 2020, mostrando a indiscutível redução das chuvas nos últimos anos, cuja crise mais aguda ocorreu durante o ano de 2021.

As curvas de potência e de ENA se cruzam exatamente em abril e em novembro, indicando claramente que existe uma perfeita complementariedade entre a sazonalidade da cana e a sazonalidade das UHE’s.

A energia de 60 TWh estimada acima corresponde a cerca de 28% do volume total de água armazenada nos reservatórios, energia que por acaso é gerada justamente no período seco, quando o baixo nível dos reservatórios costuma causar perda de eficiência nas turbinas hidráulicas e causar enormes riscos de danos nos seus rotores devido à ocorrência de cavitação.

É necessário lembrar que o ONS, além da energia elétrica, está obrigado a fornecer também para a sociedade brasileira os Serviços Ancilares, que podem ser definidos como sendo “o conjunto de serviços, fornecidos juntamente com a energia elétrica, necessários para manter a qualidade da energia e a confiabilidade do sistema, garantindo que a energia entregue ao consumidor esteja dentro de padrões de qualidade previamente estabelecidos”. Estes serviços naturalmente têm custos adicionais, além daqueles relativos à geração da energia propriamente dita.

Atualmente no Brasil as UHE’s e PCH’s estão suprindo a maioria dos Serviços Ancilares no que diz respeito à confiabilidade do SIN, sendo os custos destes serviços pagos por pela sociedade como um todo. Mas as empresas que compram energia fotovoltaica e eólica com preço baixo, não estão pagando pelos Serviços Ancilares. Para corrigir estas distorções, as energias intermitentes deveriam incorporar também no seu preço os custos dos Serviços Ancilares, que incluem o armazenamento de energia.

Embora a geração de energia elétrica com potência firme a partir da cana seja sazonal, no caso específico do Brasil esta sazonalidade colabora com o armazenamento de energia nos reservatórios das UHE’s. Na Figura 1 é possível verificar que em 2020 o setor canavieiro já disponibilizou 22,6 TWh, valor que poderia ser praticamente triplicado com a cana já existente, quando for desenvolvido um PDE adequado que incentive o setor privado a fazer os investimentos indispensáveis para o aumento da geração de energia a partir da cana e de outras biomassas.

Cada vez mais, a reserva de água será indispensável para garantir a boa qualidade dos Serviços Ancilares, à medida que crescem os parques eólicos e fotovoltaicos produzindo apenas energia intermitente.

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br