Energia Renovável do Brasil: Nortear ou Orientar?
Tenho o privilégio de fazer parte do Conselho Técnico Consultivo (CTC) da COGEN (Associação da Indústria de Cogeração de Energia), em cujas reuniões a cada dois meses há muita troca de informações, resultando num aprendizado inestimável. Na última reunião do CTC me dei conta que os verbos nortear e orientar, que sempre considerei sinônimos, poderiam ser usados em um texto com conceitos distintos, visando avaliarmos as possíveis rotas para a utilização das diversas fontes de energia renovável do Brasil.
Ano passado li, e recomendo, o livro “Primeiros Passos” do paleoantropólogo Jeremy DeSilva. O autor mostra como nós humanos somos os únicos mamíferos que andam sobre duas pernas, e como o fato de sermos bípedes nos levou à nossa ânsia por explorações, pois o bipedalismo nos permite percorrer grandes distâncias com menor consumo de energia. O bipedalismo nos levou a um fantástico desenvolvimento tecnológico, anterior e talvez ainda mais relevante do que a roda: o sapato! Nossos ancestrais sempre caminharam primordialmente para o lado onde nasce do sol, o Oriente. E partindo da África, sempre caminhando para o Oriente, chegaram até a Ásia, a Oceania, a América e acabaram dominando todo o planeta. Daí o verbo orientar.
Milênios depois, o desenvolvimento da bússola, indispensável para as grandes navegações europeias que se iniciaram no século XV, com o magnetismo terrestre atraindo a sua agulha para os polos do planeta, fez com que a nossa referência geográfica passasse a ser o Norte. Daí o verbo nortear.
Considerando o verbo nortear como “olhar para o Norte” e o verbo orientar como “olhar para o Oriente”, chegamos ao dilema com relação ao planejamento de longo prazo a respeito da utilização das fontes de energia renovável do Brasil. Devemos continuar olhando primordialmente para o que está ocorrendo no Norte do planeta e para as suas imensas demandas de energia renovável? Ou podemos olhar também para o Oriente, buscando criar alternativas e desenvolver mercados para tecnologias que sejam mais afeitas à natureza do nosso país e de outros países similares ao nosso?
A COGEN está completando 20 anos de fundação em 2023 e tem por objetivo fomentar a utilização de sistemas de cogeração de energia, buscando soluções mais eficientes e com custos de energia mais baixos.
O conceito de cogeração é a produção simultânea e de forma sequenciada de duas ou mais formas de energia a partir de um único combustível. O processo mais comum é a produção de energia elétrica (ou mecânica) e de energia térmica (calor e/ou frio) a partir de gás natural (GN) e/ou de fontes de biomassa. Os processos de cogeração são indispensáveis para o futuro da humanidade, pois a geração de dois ou mais tipos de energia permite a utilização mais eficaz de qualquer fonte de energia, fóssil ou renovável. Via de regra a energia gerada a partir de fontes renováveis é mais cara do que a energia gerada a partir de fontes fósseis, razão pela qual devemos procurar usar a energia renovável com o máximo de eficiência possível.
Se cogeração é bom para o futuro da humanidade, cogeração com fonte renovável é muito melhor!
A indústria de processamento de cana adota o processo de cogeração nas suas plantas há mais de um século. Os registros da COGEN indicam capacidade instalada de 20,6 GW de energia elétrica em sistemas de cogeração no Brasil, representando 10,7% do total da matriz elétrica brasileira de 193,1 GW. E a fonte renovável com bagaço de cana, com potência instalada de 12,4 GW, equivale a 60,5% de toda a cogeração no Brasil.
Nos próximos anos a cogeração a partir da fonte GN deverá percentualmente crescer mais, em função da expectativa de baixa do preço do GN no Brasil e da implantação de novos gasodutos que vão permitir a sua utilização em sistemas de cogeração nas indústrias e nos grandes centros urbanos.
A cana é uma fonte de energia renovável que no Brasil tem característica sazonal (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2022 - Natureza das Fontes de Energia Renovável - Serviços Ancilares), sazonalidade que deve ser levada em conta quando buscamos aproveitar ao máximo o seu potencial, já que fontes de energia sazonais ou intermitentes (solar e eólica) necessitam de sistemas de armazenamento de energia para garantir o suprimento constante da potência a ser despachada.
Considerando as tecnologias já comercialmente consolidadas, a cana fornece, além do açúcar, energia a partir do etanol combustível e de diversos resíduos: bagaço, palha e DQO da vinhaça, da torta de filtro, etc.
Utilizar bagaço excedente e palha para gerar energia elétrica não é um sistema de cogeração, operando ciclos termodinâmicos com baixa eficiência na faixa de 25% a 30%, sendo a maior parte do potencial energético do combustível perdida na forma de calor para a atmosfera.
O etanol combustível usado para mobilidade é uma forma de energia armazenável e, portanto, do ponto de vista da eficiência energética é recomendável usar o bagaço excedente para produção de etanol 2G. Já o bagaço é uma matéria prima mais adequada do que a palha para a produção do etanol 2G, e assim do ponto de vista técnico o ideal seria usar palha para substituir o bagaço que fornece a energia necessária para o processamento da cana, com a correta adequação das caldeiras para a queima de palha.
Evidentemente, qualquer processo que use o bagaço excedente em sistemas de cogeração será sempre bem-vindo, como por exemplo a produção de etanol de milho em plantas associadas.
O biogás produzido a partir de DQO de fontes diversas pode ser usado para geração pura de energia elétrica e, eventualmente, com sistemas de cogeração visando a geração de bagaço excedente (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2021 - Cogeração nas Usinas com Biogás). Mas são soluções que exigem alto investimento, o qual atualmente não retorna considerando-se o sistema de cálculo do valor do PLD vigente no Brasil, muito instável em decorrência das variações pluviométricas.
Já o biometano, produzido a partir da purificação do biogás, pode ser usado para mobilidade e para outros fins diversos em sistemas de gasodutos para GN. Como há a perspectiva de crescimento dos sistemas de cogeração com GN no futuro próximo, o biometano produzido a partir da cana também poderá ser utilizado em sistemas com maior eficiência energética. E como o biometano pode ser armazenado e transportado por caminhões, esta pode ser uma alternativa para as usinas que estão mais distantes dos gasodutos. O transporte rodoviário seria uma etapa preliminar visando o desenvolvimento de mercado de consumidores de biometano, até que o volume da oferta/demanda torne econômica a instalação de gasodutos. Para as usinas que estão próximas de gasodutos, provavelmente a melhor alternativa será o fornecimento de biometano para a rede da distribuidora de GN.
Mas voltando ao dilema que originou este texto, vamos falar de um modismo atual: o hidrogênio verde (vide texto da Revista STAB da edição janeiro/fevereiro/março de 2023 - Enquanto o Hidrogênio Não Chega).
Recentemente fui muito criticado quando tentava explicar as dificuldades técnicas inevitáveis para um investidor que está convencido de que vai exportar hidrogênio verde para a Europa, produzido por eletrólise no Piauí usando como fontes de energia apenas a solar e a eólica. Segundo ele lá no Piauí quando o sol se põe começa a ventar e vice-versa. Só falta pedirmos para a mãe Natureza também assinar o contrato.
Este investidor está olhando para o Norte, com o objetivo de exportar energia limpa para ser utilizada lá, mas talvez o melhor para o Brasil seria usar energia limpa aqui produzindo componentes ou produtos acabados para serem exportados. Ou pelo menos usar o hidrogênio verde como um importante elemento de barganha para a assinatura de acordos mais favoráveis entre o Mercosul e a Europa.
Outro olhar para o Norte é admitir que toda a energia necessária para a mobilidade dever ser exclusivamente elétrica. Faz todo o sentido do ponto de vista da eficiência energética, já que veículos com motores elétricos são muito mais eficientes do que com motores a combustão interna, utilizando muito menos energia. Mas a maior parte da energia elétrica necessária continua sendo gerada a partir de fontes fósseis. Tanto é verdade que recentemente a Suécia, um dos países que é exemplo no uso de energia renovável, decidiu que vai retomar a geração de energia elétrica a partir de usinas nucleares para conseguir eliminar as fontes fósseis da sua matriz energética.
Lógico que devemos sempre estar atentos ao que está ocorrendo nos países mais desenvolvidos, mas sem deixar de olhar para outros países que possam ter similaridade conosco na produção de combustível renovável para mobilidade. Ou seja, olhar também para o Oriente.
Armazenar e transportar hidrogênio é muito caro e pode ser muito perigoso. Mas hidrogênio pode ser produzido a partir de GN e de biometano, ou seja, da mesma molécula com origens distintas. E hidrogênio também pode ser produzido a partir do etanol, em veículos com motor elétrico e com célula de combustível. O nosso guru Dr. Plínio Nastari, tem repetidamente demonstrado em seus excelentes textos que do “poço à roda” esta tecnologia em desenvolvimento no Brasil tem uma pegada de carbono menor do que a pegada de carbono dos veículos elétricos com bateria. O tanque de etanol é o nosso estoque de hidrogênio.
É indispensável ressaltar que estivemos sempre falando em eficiência, mas na vida real a palavra-chave é eficácia. Uma tecnologia extremamente eficiente com um custo astronômico não é eficaz (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto de 2017 - Redução de Custos, Eficiência, Eficácia, Excelência). A tecnologia desenvolvida no Brasil do veículo elétrico com célula de combustível é do ponto de vista de pegada de carbono mais eficaz, mas o veículo elétrico é mais barato e demanda menos manutenção.
Assim nas próximas décadas o desafio no Brasil será a consolidação técnica e econômica destas tecnologias em colaboração com outros países que têm a mesma vocação que a nossa, com o objetivo de criar uma escala de mercado que permita competir em volume com os veículos elétricos que virão do Norte.
Mas não nos enganemos. Talvez com exceção da energia elétrica gerada nas UHE’s, mas que depende muito de fatores climáticos, a energia gerada de fontes renováveis costuma ser sempre mais cara do que a energia fóssil. No Brasil a energia elétrica eólica e solar ainda estão artificialmente baratas porque a sua intermitência está sendo compensada pelas UHE’s. Ou por energia fóssil quando falta chuva, criando custos pesados para toda a sociedade, como ocorreu após a última crise hídrica no Brasil.
Se os brasileiros quiserem no futuro aumentar o uso de energia renovável, os nossos representantes no Parlamento devem ser devidamente pressionados no sentido de criar mecanismos legais e fiscais que possam tornar competitivas as fontes de energia renovável. Na teoria, todos queremos ser “verdes”, mas quando o preço do etanol sobe, todos vamos com gasolina mesmo. Afinal, o órgão mais sensível do ser humano é o bolso.