Transição Energética: Mitos e Fatos
Em fevereiro passado solicitei um Uber e fui atendido por um carro elétrico em cujas portas estava escrito “Zero Emissões”. Troquei informações com o motorista a respeito do carregamento e da vida útil da bateria, mas não houve tempo para comentar a respeito do mito propagado no veículo, já que o mesmo somente seria válido caso fosse possível garantir que 100% da energia elétrica consumida pelo veículo é gerada a partir de fontes renováveis e sem pegada de carbono. Mesmo no Brasil, país que tem uma matriz elétrica com alto percentual de energia renovável, ainda temos uma parcela de energia elétrica sendo gerada a partir de fontes fósseis, como carvão e gás natural (GN).
Há quase três anos, em maio de 2021, a International Energy Agency (IEA) emitiu o relatório “Net Zero Emissions by 2050: A Roadmap for the Global Energy Sector”. Trata-se de documento com proposições para atender as metas do Acordo de Paris, ou seja, limitar o aumento do aquecimento global em até 1,5 oC em relação ao período pré-industrial. Paradoxalmente, em março de 2024 a mesma IEA relatou que no ano de 2023 as emissões globais de CO2 relacionadas à geração de energia elétrica atingiram um novo recorde, impulsionadas em parte pelo aumento do uso de combustíveis fósseis em países onde as secas prejudicaram as hidrelétricas e em parte devido à recuperação do setor de aviação civil no período pós pandemia.
Para a humanidade será um desafio inalcançável completar a transição energética, zerando as emissões de carbono num período aproximado de apenas 26 anos a partir de agora. Mas podemos procurar amenizar a situação propondo alternativas mais realistas e objetivas que sejam exequíveis nos curto e médio prazos.
Existe o mito de que o petróleo provém da decomposição dos dinossauros, mas a teoria mais aceita pelos cientistas é a de que o petróleo provém de trilhões de minúsculas algas e plâncton. Como os dinossauros viveram na mesma era na qual ocorreu a formação do petróleo, é possível que restos orgânicos deles e de outros vegetais também tenham contribuído para a sua formação. Mas relevante aqui é o fator tempo. Estima-se que cerca de 70% dos depósitos de petróleo tenham sido formados entre 250 e 60 milhões de anos passados, e assim houve muito tempo disponível para que ocorresse o armazenamento desta energia, denominada fóssil, que proveio do Sol.
Como na sua essência toda fonte de energia renovável que usamos também vem do Sol, temos o desafio de em poucas décadas substituir uma fonte de energia fóssil, cujo armazenamento foi consolidado durante milhões de anos, por fontes renováveis que na maioria das vezes são sazonais ou intermitentes, necessitando assim de uma alta capacidade de armazenamento para garantir a sua disponibilidade, o que é impraticável na vida real.
Infelizmente não será possível substituir em pouco tempo todo o complexo industrial energético do “oil & gas” que foi implantado ao longo dos últimos 150 anos, conforme menciona o CEO da ExxonMobil, Darren Woods. Ele conhece bem o mercado, e relata que a energia consumida pelos carros e pelos veículos leves de carga corresponde a apenas 10% dos efeitos das emissões de CO2, e que mais de 80% destes efeitos estão relacionados à energia consumida no transporte em geral (rodoviário, ferroviário, marítimo e aéreo), na indústria pesada e na geração de energia elétrica.
A pedido do governo da Suécia, o prof. Simon Michaux (ele é especializado em mineração e recursos energéticos e está na Web, vale a pena consulta-lo), desenvolveu estudos sobre a viabilidade do Net Zero em 2050 e sobre quais as possíveis soluções para o enfrentamento da transição energética no rumo a um futuro sustentável e livre de combustíveis fósseis.
Ele desenvolve projeções de utilização de fontes renováveis que, por serem sazonais ou intermitentes, exigiriam capacidades de armazenamento de energia que são inexequíveis, colocando luz sobre cada aspecto do desafio da transição energética global, apontando cada nó a ser desatado e dando a exata dimensão da complexidade do gigantesco desafio que a humanidade tem pela frente.
Destaca ainda que os atuais governantes e agentes públicos não fizeram a mínima lição de casa antes de assumir objetivamente compromissos nacionais e internacionais baseados no "pensamento mágico" dos extremistas ambientais, gente que costuma jogar sopa na tela da Monalisa, mas que não tem formação técnica e nem capacidade cognitiva para entender que tais compromissos são física e economicamente impossíveis de serem atingidos.
Concordo com o prof. Michaux e penso que o grande equívoco dos nossos governantes é não transmitir para a sociedade os conceitos de que a energia renovável sempre será mais cara do que a energia fóssil e de que o preço (não o custo) da energia fóssil não pode ser baixo, para que o seu consumo pela sociedade seja minimizado e para que todo e qualquer desperdício seja evitado.
As fontes de energia renovável, no atual estado tecnológico da humanidade, custam mais caro do que as fontes de energia à base de combustíveis fósseis, notadamente em função das enormes capacidades de armazenamento requeridas. Esta diferença de custo foi denominada por Bill Gates de “green premium”, e a sociedade deve ser conscientizada de que pagar o “green premium” pode amenizar os nossos problemas e de que simplesmente protestar não resolve nada.
O compromisso de arcar com o “green premium” vai variar em cada sociedade, dependendo do seu nível de desenvolvimento. Sociedades mais ricas podem ser mais facilmente convencidas do que as mais pobres.
Mas por outro lado, os países desenvolvidos produziram toda a sua riqueza utilizando “oil & gas”, e a grande demanda adicional de energia que surgirá nos países em desenvolvimento e nos países pobres, oxalá em um futuro próximo, vai necessitar de novas fontes de energia que não poderão ser supridas somente pelas renováveis. Qual seriam então as possíveis alternativas?
Como os países pobres e em desenvolvimento não poderão prescindir da utilização do “oil & gas” para atender ao aumento do consumo de energia das suas populações, temos que considerar que a demanda por “oil & gas” continuará forte, sendo inclusive o Brasil um dos players importantes neste processo. Neste sentido, limitar a produção de petróleo na margem equatorial do Brasil em função da pressão dos ambientalistas não teria sido uma decisão de bom senso.
Entretanto, as emissões a partir do uso de “oil & gas” podem e devem ser reduzidas por técnicas de captura e armazenamento de gás carbônico (Carbon Capture Storage - CCS). Sistemas CCS já estão sendo planejados no hemisfério Norte em geração de eletricidade com GN, em plantas para produção de fertilizantes e em plantas siderúrgicas, entre outras aplicações industriais, com a sociedade pagando assim a sua parcela do “green premium”.
Outra rota viável é a produção de eletricidade a partir da energia nuclear, com emissões zero na operação, embora com o inconveniente do armazenamento dos resíduos radioativos. França e Suécia já estão indo nesta direção. A Alemanha, que desativou nucleares e aumentou muito a utilização de energia renovável tendo como garantia de disponibilidade o GN da Rússia, ficou em maus lençóis com a guerra do Putin. Acredito que o Brasil também deverá considerar no médio prazo a ampliação da geração de energia elétrica por meio de centrais nucleares, de preferência não estatais.
Naturalmente uma parcela desta demanda adicional de energia no mundo poderá e deverá ser atendida por fontes renováveis, e podemos discorrer sobre possibilidades mais objetivas e realistas no curto prazo no Brasil, país com inegável vocação natural para ser um líder na transição energética.
A UNICA divulgou em fevereiro de 2024 a notícia de que no ano civil de 2023 houve recorde de produção de bioeletricidade, no total de 29.285 GWh para uma moagem total de 714.787.689 t de cana. Como cerca de 82% da biomassa corresponde aos subprodutos da cana de açúcar (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2022 - Natureza das Fontes de Energia Renovável - Serviços Ancilares), chegamos a uma exportação específica de apenas 33,5 kWh/tc.
Sabemos que este valor do ponto de vista técnico pode no mínimo ser dobrado em sistemas de cogeração, com tecnologia já consolidada, mas que os investimentos não ocorrem porque o preço da energia elétrica não traz um retorno satisfatório (vide texto da Revista STAB da edição outubro/novembro/dezembro de 2023 - O Sistema Elétrico Brasileiro gerou um Algoritmo Implausível). Não há “green premium” no preço desta energia renovável sazonal.
Sabemos que o potencial de produção de biogás/biometano a partir de vinhaça e de torta de filtro permite a substituição de todo o óleo diesel utilizado no cultivo e no CTT da cana, novamente com tecnologia já consolidada. A substituição do diesel por energia renovável diminuiria consideravelmente a pegada de carbono para a produção do etanol combustível, mas os investimentos ainda não ocorrem por falta de políticas públicas adequadas.
Sabemos que, dos pontos de vista de eficiência energética e de redução de pegada de carbono, é muito mais racional usar o bagaço excedente e a palha para produzir etanol de milho em planta anexa (vide texto da Revista STAB da edição abril/maio/junho de 2022 - Cana e Milho: Matérias Primas Concorrentes ou Complementares?), ou para produzir etanol de segunda geração, no lugar de produzir apenas energia elétrica. Há tecnologia consolidada para minimizar os riscos dos investimentos e novamente falta planejamento estratégico para viabilizar definitivamente o etanol para a mobilidade urbana em veículos híbridos ou para o transporte de hidrogênio em veículos com célula de combustível.
Sabemos que existe uma discussão entre Brasil e Paraguai a respeito do valor da energia excedente de Itaipu a ser vendida para o Brasil. A geração em UHE é um caso típico no qual o aspecto Capex é mais relevante do que o aspecto Opex. E como após 50 anos todo investimento em Itaipú já foi amortizado, o governo brasileiro advoga um valor baixo para esta energia excedente de fonte renovável. Ora, nestes tempos de transição energética, nossos governantes deveriam compreender que energia renovável deve ser negociada pelo seu “preço” e não pelo seu “custo”. Afinal de contas as UHE´s brasileiras estão compensando, com fornecimento firme de energia renovável, os baixos fatores de carga de fontes intermitentes como a eólica (fator de carga médio de 40%) e a solar (fator de carga médio de 20%), inclusive desperdiçando ENA (Energia Natural Afluente) nas UHE’s, que deveria ser armazenada e operando com baixa eficiência sob condições de carga muito diferentes das originalmente projetadas. É lógico que o governo paraguaio está apenas defendendo os seus próprios interesses, mas do ponto de vista da transição energética global, neste caso está sendo mais coerente do que o governo brasileiro. Nossos governantes devem entender que a energia hidrelétrica deve ser vendida pelo seu “preço” e não pelo seu “custo”, ou seja, deve ser vendida com “green premium”.
Para que os investimentos acima mencionados ocorram as políticas públicas devem buscar a viabilidade da inclusão do “green premium”, principalmente pela adequada tributação dos combustíveis fósseis usados pela parcela menos pobre da população e pela eliminação de benesses para fontes renováveis já tecnicamente consolidadas, como a eólica e a solar.
Enquanto isso, em relação à transição energética, o que nós cidadãos comuns podemos fazer no dia a dia é explicar para os nossos filhos, netos, amigos (inclusive os extremistas ambientais) e eventuais subordinados a importância de economizarmos energia e materiais (que consomem energia para ser produzidos) e de fazermos o correto descarte de todo tipo de material reciclável.
Este é um grande dilema atual da humanidade. Como sociedade todos sabemos que o aquecimento global será prejudicial para todos nós, principalmente para os mais pobres, mas individualmente ninguém quer abrir mão do seu consumo exagerado de energia e de materiais.