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Descarbonização => Transição Energética STAB - Jul/Ago/Set 2024

A transição energética é um objetivo (fim) que pode ser parcialmente atingido por medidas (meios) que promovam a descarbonização em processos agroindustriais diversos.

O objetivo deste texto é propor uma saudável complementariedade entre fontes de energia fóssil e renovável, desde que no final do dia a emissão de CO2 para a atmosfera tenha sido reduzida. Um clássico caso no qual os fins, descarbonizar o setor agroindustrial, justificam os meios, usar parcialmente combustível fóssil.

Começamos mencionando dois Seminários Técnicos da COGEN, eventos sempre muito enriquecedores e indispensáveis para os players do mercado de geração de energia renovável, como é o caso dos processadores de cana de açúcar.

No dia 21 de março passado a COGEN promoveu uma palestra apresentada pelo Sr. Christiano Vieira da Silva, Diretor de Operação do ONS, o Operador Nacional do Sistema Elétrico Brasileiro (SEB). Em poucas palavras, é do Christiano a responsabilidade por garantir a disponibilidade de energia no SEB e assim evitar os apagões no Brasil. Um enorme desafio, já que na palestra ele informou que, naquele mesmo mês de março, 94% da matriz elétrica brasileira estava sendo atendida por fontes renováveis. Ou seja, no caso específico do Brasil, hoje em dia o SEB já está praticamente atendendo o desafio da transição energética.

Mas em função do crescimento acelerado da geração de energia elétrica renovável intermitente, ou seja, as fontes eólica, solar concentrada e solar MMGD, as hidrelétricas (UHE) tem sido as responsáveis pelo atendimento da disponibilidade de potência quando a energia gerada por aquelas fontes apresenta variações repentinas, sendo a energia solar o caso mais marcante.

O Christiano apresentou inúmeros diagramas mostrando a “rampa de geração” que tem sido verificada na operação do ONS entre as 17h e 20h, quando o fornecimento da solar começa a despencar. Situações similares ocorrem com a eólica, com variações registradas de variação de geração de cerca de 2.650 MW em uma hora, valor que corresponde a 83% da capacidade da UHE de Xingó, a maior da Região Nordeste.

Em 2024 o ONS tem registrado uma “rampa de geração” média na faixa de 25 GW, mas houve um caso real de rampa de 28,1 GW que foi atendida em 3h20min predominantemente com geração hidráulica. E para permitir o contínuo crescimento das renováveis intermitentes no ritmo atual, há uma previsão de rampa de 50 GW em 2028. Esta intermitência, que não pode ser regulada pelas UHE’s, foi a causa raiz do apagão de agosto de 2023 no Nordeste, razão pela qual o ONS passou a despachar energia 30% abaixo da capacidade nominal de geração das fontes eólica e solar. E, mais importante, as UHE’s não são projetadas para atender variações de potência tão intensas, e não conseguirão atende-las quando o nível dos reservatórios estiver mais baixo (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2022 - Natureza das Fontes de Energia Renovável - Serviços Ancilares).

No dia 23 de maio passado a COGEN promoveu uma palestra apresentada pelo Sr. Thiago Guilherme Ferreira Prado, Presidente da EPE, a Empresa de Pesquisa Energética. Também em poucas palavras, é do Thiago a responsabilidade pela emissão do Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE com visão de prazo de 10 anos) e do Plano Nacional de Energia (PNE com visão de prazo de 50 anos).

O Thiago também mencionou as rampas de geração que estão ocorrendo diariamente, e enfatizou a necessidade de serem adotadas medidas indispensáveis para se adequar a flexibilidade operacional do SIN (Sistema Integrado Nacional) e para garantir a indispensável disponibilidade do sistema. Ou seja, o planejamento decenal considera que a expansão do sistema deverá atender critérios de suprimento de energia e de potência.

Mas como a rampa de geração deverá estar cada vez mais inclinada no final de cada dia, a potência deve ser fornecida rapidamente por equipamentos em stand-by, e a geração por meio de turbina a gás natural (GN) com ciclo termodinâmico aberto (gases quentes de combustão descarregados na atmosfera) apresenta-se como a mais indicada tecnicamente para uma rápida entrada no SIN, embora sendo um ciclo de baixa eficiência.

Do exclusivo ponto de vista da geração com menor custo, os leilões de potência deveriam ser contemplados para grandes termelétricas, digamos na faixa de 300 a 500 MW. Mas neste caso, haveria a necessidade de muito investimento na transmissão e na distribuição de toda esta energia, que seria gerada apenas durante algumas poucas horas por dia. Além disso, haveria a necessidade de maior período de tempo para ligar e desligar estas térmicas de maior porte.Por outro lado, se a potência nova for gerada de forma mais distribuída, digamos numa faixa entre 10 MW e 50 MW, próxima aos centros de carga, não haveria necessidade de investimentos pesados em transmissão e em distribuição.

Desta maneira, os futuros leilões de potência previstos pela EPE podem ser uma oportunidade muito interessante para os processadores de cana, principalmente para aqueles que estão instalados mais próximos de gasodutos.

Naturalmente também teriam vantagem inicial as usinas que eventualmente já tenham alguma folga na capacidade na conexão elétrica, embora mesmo as unidades que dependam de conexão nova sempre trarão para o SEB as vantagens da geração distribuída.

Assim, a nossa recomendação é que as usinas se preparem para a possibilidade de eventual participação nos leilões de potência previstos pela EPE, discutindo a priori com as distribuidoras de GN os aspectos de suprimento e de preço do combustível e as perspectivas de conexão com a rede de gasodutos.

Nossos estudos têm demonstrado que a produção de biogás nas usinas visando a geração de energia elétrica excedente não apresenta retorno financeiro sustentável, em função da estrutura de formação de preço do PLD praticada no SEB (vide texto da Revista STAB da edição outubro/novembro/dezembro de 2023 - O Sistema Elétrico Brasileiro Gerou um Algoritmo Implausível). Mas por outro lado, temos verificado que do ponto de vista operacional a produção de biometano, a partir do biogás, para a substituição do óleo diesel na frota de CTT (Colheita, Transbordo e Transporte) tem sim retorno econômico (vide texto da Revista STAB da edição abril/maio/junho de 2021 - Exportação de Energia Elétrica x Consumo de Energia Térmica).

Ocorre que a substituição do óleo diesel por biometano é um processo de investimento demorado, pois a taxa de renovação usual da frota encontra-se na faixa de 10% ao ano. Não é viável trocar uma frota completa de uma safra para outra. E se a produção do biometano for implementada em etapas, de acordo com ritmo de renovação da frota, ficará mais custosa e operacionalmente mais complicada.

Outro aspecto importante desta alternativa tecnológica é que a produção de biometano na usina é um processo microbiológico e, como sabemos, onda há vida há morte. Uma inesperada contaminação no biodigestor pode reduzir a produção de biometano e paralisar a frota parcialmente. Evitamos este risco quando há uma conexão com um gasoduto de GN. Mas como viabilizar o investimento em um gasoduto que ficaria muito ocioso enquanto durasse a substituição completa da frota?

Uma possibilidade é justamente criar uma demanda de GN visando atender uma turbina a gás cuja potência fosse vendida em um leilão e cujo investimento seria pago pelo preço da energia vendida para o SEB durante 15 a 20 anos. A distribuidora de GN poderia ter interesse em investir no gasoduto para atender às necessidades da usina, e a usina poderia usar o gasoduto para vender excessos de biometano, enquanto a frota do CTT não fosse substituída. E desta maneira a frota do CTT poderia ser renovada de forma gradativa, durante 10 anos ou mais, mas pagando mais rapidamente o investimento na produção de biometano, que poderia ser vendido para a distribuidora de GN.

Em tempo, no caso específico das usinas de cana, o gás de combustão da turbina a gás poderia ser usado para a secagem de bagaço, mesmo que a plena carga apenas em algumas horas por dia, pois o secador de bagaço tem partidas e paradas mais simplificadas do que uma caldeira de recuperação, por exemplo.

Teríamos assim um ciclo de cogeração híbrido combinando energia fóssil com energia renovável.

Mas temos notado no setor canavieiro uma grande resistência na utilização de GN por se tratar de um combustível fóssil, o qual mancharia a característica “verde” da bioenergia atualmente produzida.

Acreditamos que se trata de um preconceito que deve ser combatido tecnicamente. No final do dia o que importa é se o ciclo híbrido adotado reduziu a pegada de carbono da usina que havia antes da sua adoção. Se um investimento deste tipo acaba por substituir o óleo diesel, mesmo que de forma gradual, certamente estamos reduzindo a pegada de carbono na produção de etanol, e indiretamente a potência elétrica (disponibilidade) fornecida pelo GN e/ou biometano estaria viabilizando tecnicamente a geração intermitente da solar e da eólica. 

Num país como o Brasil que tem uma matriz elétrica com até 94% de energia renovável e a matriz energética com 49% de energia renovável, lembrando que a matriz energética mundial é apenas 16% renovável, a transição energética já está em andamento há muito tempo, com as nossas UHE’s, o nosso etanol e o nosso biodiesel. Temos que nos preocupar é com a constante descarbonização, por exemplo viabilizando técnica e economicamente processos para a substituição do óleo diesel na frota de CTT.

Não podemos nos iludir com a proposta da AIE (Agência Internacional de Energia) para a humanidade completar a transição energética até 2050. É um delírio, considerando o contínuo crescimento da demanda por mais energia no planeta (vide texto da Revista STAB da edição jan/fev/mar de 2024 - Transição Energética - Mitos e Fatos).

E da mesma maneira que costumamos tratar as energias renováveis como fontes complementares entre si, não podemos excluir a possibilidade de complementariedade entre fontes fósseis e renováveis, desde que nos processos envolvidos sejam atingidas metas de descarbonização relevantes.

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br