Tendências na Preparação de Cana
Todo engenheiro recém formado costuma ter um ídolo, que o fascina e o cativa no início das suas atividades profissionais. O meu ídolo era um engenheiro sul africano chamado Deon Hulett, que iniciava as suas atividades de consultor no Brasil através da Copersucar, o que foi, aliás, uma decisão muito acertada.
Deon não tinha medo de tentar e errar. Quando fazíamos algum questionamento a respeito de um dado dimensionamento, ele sempre dizia: "Pode continuar aumentando a capacidade, quando alguma coisa quebrar, nós vamos saber a real capacidade deste equipamento".
Ele também gostava muito de testar novidades. Naquela época iniciávamos a instalação de picadores e desfibradores com facas e martelos oscilantes no Brasil, pois até então a preparação era sempre feita por dois picadores com facas fixas (aparafusadas). Para evitar a retirada dos eixos de oscilação durante a troca das facas e dos martelos, sua idéia era usar um sistema de trava por meio de cunhas e pinos, as quais ficariam presas pelo próprio efeito da força centrífuga.
Nós cansamos de perder facas e martelos com este sistema de fixação, pois os mesmos, teimosamente, insistiam em não ficar no lugar. Após muitas tentativas, Deon decidiu voltar a usar o sistema tradicional que temos até hoje, com as facas e os martelos montados diretamente nos eixos de oscilação, com a utilização de buchas de desgaste.
Durante cerca de cinco anos, os sistemas de preparação de cana antigos com picadores foram sendo paulatinamente substituídos por picadores e desfibradores leves, com facas e martelos oscilantes. Estes equipamentos estavam desenhados para ter uma velocidade periférica na faixa de 60 m/s, e índice de preparação (IP) na faixa de 80 a 85%.
No início dos anos 80 apareceram os primeiros desfibradores pesados, também originários da África do Sul, desenvolvidos para obter maiores IP, que são indispensáveis quando se usa instalações com difusores, típicas daquele país. Estes equipamentos estavam desenhados para ter uma velocidade periférica na faixa de 90 m/s, e IP na faixa de 90 a 92%. Estes primeiros desfibradores pesados eram do tipo "vertical", já que recebiam a cana por cima, dosada por meio de um picador tradicional. Este tipo de arranjo criava a necessidade de alterações nas instalações existentes, pois era necessário alterar a inclinação da esteira de cana.
Foram desenvolvidos então os desfibradores pesados montados sobre esteira, o que facilitava o arranjo físico da instalação. Surgiram também os niveladores, necessários em função das altas capacidades de moagem com cana inteira, o que ocasionava altos colchões de cana nas esteiras e consequentemente buchas nos picadores.
Embora o desfibrador pesado seja indispensável quando se usa difusor, no Brasil a polêmica sobre a sua necessidade, quando se usa moenda, até hoje não tem uma resposta definitiva. Teoricamente, um índice de preparo maior proporciona uma melhor extração no primeiro terno da moenda e, se assumimos que os demais ternos tem a mesma extração individual, um conjunto de moendas com desfibrador pesado teria uma melhor extração. Na prática esta teoria não tem sido confirmada, principalmente quando temos moendas com seis ternos. E infelizmente não existem duas linhas de moendas idênticas processando a mesma cana, apenas com o sistema de preparo diferente, situação que poderia nos dar uma resposta conclusiva e definitiva na prática.
Instalar desfibrador pesado sem ganhar na extração não é vantagem, pois o consumo de potência é maior. Nossos critérios de cálculos indicam uma potência instalada de 24 kW.h/t fibra para o desfibrador leve e de 35 kW.h/t fibra para o desfibrador pesado.
Desta maneira, embora existam muitos desfibradores pesados no Brasil, a maioria das instalações ainda utiliza desfibrador leve, precedido sempre de um picador com facas oscilantes e eventualmente de um nivelador. Considerando 12 kW.h/t fibra no nivelador e 20 kW.h/t fibra no picador, este arranjo típico representa uma potência total instalada de cerca de 56 kW.h/t fibra, com IP de 85% no máximo.
Embora esta instalação brasileira típica apresente uma ótima relação custo / benefício, é sempre interessante discutir novas tendências no desenvolvimento da tecnologia.
Uma tendência inexorável em nosso setor é o aumento do processamento de cana picada, devido à proibição gradativa de queima da cana. O processamento de cana picada representa menor altura do colchão de cana na esteira, o que poderia dispensar o uso de nivelador tradicional, acionado por turbinas.
Por outro lado, é importante lembrar que o IP apenas não define completamente a "qualidade" da preparação da cana. Cana preparada com excesso de finos não é adequada. Na moenda dificulta a sua "pega" pelas rolos, e no difusor cria a colmatação do leito de cana, provocando inundações e curto circuito entre os diversos estágios. Na África do Sul, inclusive, foi desenvolvido e proposto há muito tempo atrás um método de avaliação da quantidade de finos na cana desfibrada, em função dos transtornos causados nos difusores principalmente.
E a quantidade de finos aumenta quando temos vários equipamentos de preparação da cana em série, pois o desfibrador processa uma cana que já está cortada e parcialmente desfibrada.
Outra tendência em nosso setor é a cogeração de energia elétrica, a qual exige economia de potência e acionamentos cada vez mais eficientes. E tanto turbinas como motores elétricos são mais eficientes para grandes capacidades de potência.
Os aspectos discutidos justificam a previsão de uma nova tendência nos sistemas de preparação de cana em futuras instalações: o desfibrador extra pesado, o qual já é utilizado atualmente em outros países.
A filosofia desta solução é obter um alto IP, sempre acima de 90%, com fibras o mais longas possível, com apenas um equipamento pesado e com potência instalada equivalente aos sistemas com desfibradores leves.
O desfibrador extra pesado opera com velocidade periférica mais alta, na faixa de 100 m/s, e possui oito fileiras de martelos para garantir um alto grau de recobrimento da placa desfibradora. Ele é montado sobre a esteira, com um tambor alimentador que opera com velocidade variável por meio de motor elétrico com conversor de freqüência, sincronizada com a velocidade da esteira de cana A potência instalada no rotor é de aproximadamente 50 kW.h/t fibra.
Este equipamento opera sem os picadores tradicionais, garantindo o IP adequado com o máximo de fibras longas na cana desfibrada, já que existe apenas uma operação de desfibramento.
Para se obter o necessário nivelamento do colchão de cana antes da sua entrada no tambor alimentador, são utilizados tambores niveladores construídos em aço carbono soldado com braços especiais, tambores estes também acionados por motores elétricos. A potência instalada nos dois tambores niveladores corresponde a cerca de 3 kW.h/t fibra, de maneira que a potência total instalada no sistema corresponde àquela mencionada anteriormente para os sistemas tradicionais existentes no Brasil.
Esta nova concepção de sistema de preparação de cana apresentaria a vantagem de obter sempre alto IP com o mesmo nível de potência instalada até agora. Seria um IP de alta "qualidade", pois apresentaria muito menor quantidade de finos na cana desfibrada.
A concentração de quase toda a potência em um único equipamento permitiria a utilização de acionadores de alta eficiência, pois a potência unitária seria mais elevada permitindo usar por exemplo turbinas a vapor de mais alta eficiência operando com vapor de pressão mais elevada. Tempos gastos em manutenção seriam também menores, em função do menor número de equipamentos envolvidos na operação de preparação da cana.
O principal desafio seria a alimentação de grandes volumes de cana inteira, o que pode ser resolvido pelo uso de esteiras com velocidades mais elevadas do que o usual, e pela ação do tambor alimentador que provoca um adensamento do colchão de cana.
Assim, é provável que, após vários anos sem muitas novidades nos nossos sistemas de preparação de cana, estejamos iniciando uma nova fase, a dos desfibradores extra pesados.