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“Causos” STAB - Set/Out 2011

A nossa Revista STAB está completando trinta anos. Quero parabenizar toda a equipe da STAB que com muito entusiasmo e dedicação tem tornado possível a edição deste singular e importante veículo de comunicação.

Recebemos da nossa chefa um pedido especial para esta edição: Um artigo que “mostre a evolução do setor sucroenergético nestes 30 anos, de acordo com a especialidade de cada um”.

Pedido feito, pedido atendido! Decidi discorrer sobre a evolução ocorrida na área industrial contando para vocês alguns “causos” ocorridos durante a minha carreira profissional nestas últimas décadas, usando os mesmos em seguida para demonstrar o quanto nosso setor evoluiu.

Engenheiro mecânico recém formado, fiz a minha primeira safra no ano de 1974. Naquela época um engenheiro mecânico na indústria era uma verdadeira mosca branca, pois havia um curso de extensão universitária na ESALQ que preparava engenheiros agrônomos para trabalhar também na área industrial. E eu estava numa usina pela primeira vez na vida. A recepção pelo pessoal prático da empresa não foi lá muito calorosa. Entregaram um livro para eu ler (um Hugot, em espanhol) e me mandaram pegar amostra de caldo no picador. Lógico que eu fui buscar a tal amostra, sem saber que se tratava de um trote!

Naquela época Cuba era o país açucareiro da moda na América. Antes do Fidel (1959) Cuba vendia açúcar com preço preferencial para os americanos. Após Fidel os cubanos passaram a fazer o mesmo com os russos. No Brasil havia consultores cubanos que diziam que não valia apena utilizar desfibradores para cana, apenas picadores seriam suficientes. A Copersucar esteve comparando as diversas tecnologias disponíveis na época (Cuba, África do Sul, Austrália, Havaí) e acertadamente decidiu pela utilização da tecnologia sul africana. Participei então da instalação de um dos primeiros desfibradores com martelos oscilantes no Brasil. O primeiro modelo foi desenhado para se trocar os martelos sem remover os eixos de oscilação, pois o martelo ficava encaixado dentro de uma caixa preso na mesma por um pino removível. Acontece que na prática o martelo sempre teimava em sair voando. Depois de vários fracassos foi adotado o projeto hoje conhecido do desfibrador COP-5, com os martelos montados diretamente nos eixos de oscilação. Nesta mesma ocasião instalamos os primeiros rolos de pressão (pressure feeders) em moendas existentes, também com desenho sul africano. Para nos ajudar com todas estas novidades vieram engenheiros sul africanos, e eu ainda hoje me lembro claramente de uma frase de um deles durante o trabalho: “Celso traga já alguns “negros” para bater marreta nestes eixos do desfibrador”. A África do Sul vivia ainda no regime do “apartheid”, e o que era natural para eles era chocante para mim.

Nas duas usinas nas quais trabalhei havia o símbolo da Revolução Industrial do Século XIX: motor a vapor para o acionamento das moendas! Os mesmos tinham volantes imensos e sistemas engenhosos de controle de velocidade por meio de válvulas comandadas pela força centrífuga de esferas de aço. Eram máquinas fantásticas, mas ficar perto delas exigia certa dose de sangue frio, pois elas podiam disparar e o volante se desintegrar!

No inicio dos anos 80 fizemos um estudo técnico detalhado para convencer o patrão a instalar caldeiras gerando vapor a 42 bar / 400 C. Depois de muita discussão a decisão foi, adivinhe: instalar três caldeiras de 150 t/h a 21 bar / 300 C! Qualquer inovação era vista com muita desconfiança e, neste caso em particular, a decisão da diretoria privou a usina de se tornar autossuficiente na geração de energia elétrica durante os 25 anos seguintes.

No inicio dos anos 80 eu cuidei do Projeto Bodoquena, um “greenfield” que deveria ser instalado em uma área próxima do Pantanal matogrossense. Neste caso já havíamos convencido o patrão a usar “a fantástica pressão” de 42 bar nas caldeiras, mas o bicho pegou no licenciamento ambiental. O “causo” interessante aqui é que para convencer as autoridades a conceder a licença ambiental, um diretor da área agronômica da usina chegou a beber um gole de vinhaça para provar que não era veneno! É verdade, aconteceu, mas mesmo assim a licença não foi concedida (hoje fico feliz que assim tenha sido!). Sabemos que vinhaça não é veneno nesta condição específica, aliás o gado adora beber vinhaça. Mas a vinhaça e principalmente os defensivos agrícolas poderiam ser uma tragédia para o Pantanal.

Na usina onde eu trabalhava tinha um outro Celso que era o responsável pelos fornecedores de cana. A cana era paga por peso, independentemente do teor de açúcar. O Celso tratava todos os fornecedores com muita cortesia e mesuras, mas ele tinha um fiscal que ficava na balança e que aplicava um “desconto” no peso da cana em função de uma inspeção visual para determinar as impurezas contidas na carga de cana. Os fornecedores ficavam fulos de raiva e para compensar o desconto colocavam pedras no meio da cana para aumentar o peso. O famoso “me engana que eu gosto” de lado a lado, mas prejudicando seriamente a eficácia da agroindústria.

Quando instalamos as tais caldeiras de 150 t/h o sistema de automação era totalmente pneumático e, portanto a integridade da caldeira dependia da garantia do suprimento de ar comprimido em grande volume para os instrumentos. Para obtermos esta garantia instalamos um compressor de ar acionado por turbina a vapor. Uma solução muito complexa e cara comparada à automação eletrônica de hoje em dia.

Em 1975, um ano após eu começar na usina, foi lançado o Proálcool, o primeiro programa mundial para substituição de petróleo por um combustível renovável em larga escala. Em 1978 eu pude visitar a primeira destilaria autônoma do Brasil que ainda hoje fica ao lado de Ribeirão Preto. Os projetos de financiamento eram aprovados desde que garantissem um rendimento mínimo de 70 l/tc! Imagine!

Estas minhas lembranças me permitem constatar que a evolução do Brasil nestes últimos 30 anos foi notável. Os primeiros países canavieiros que eu visitei foram Mauritius, Reunion (onde encontrei meu ídolo da época, o Dr. Hugot!) e África do Sul, todos em 1977. Naquela época o atraso do Brasil era vergonhoso. Hoje, 35 anos depois, a situação é oposta, sendo o Brasil referencia mundial no cultivo e no processamento de cana de açúcar.

O “causo” do trote serve para falarmos sobre a qualificação profissional dos trabalhadores no setor. Houve uma tremenda evolução nestes 30 anos. Embora ainda haja uma grande carência de profissionais bem treinados, é inegável que o nível de escolaridade dos trabalhadores na indústria não se compara com o nível do pessoal prático que operava as usinas naquela época. Hoje os diretores das empresas estão devidamente conscientizados de que treinamento adequado é fundamental.

O “causo” do desfibrador nos faz lembrar sobre o respeito aos trabalhadores e às minorias em geral. É inegável, hoje as condições de trabalho nas usinas são muito melhores o que, aliás, é verdade para o Brasil como um todo. Racismo ainda existe, infelizmente, mas estamos progredindo com certeza. Por outro lado, naquela época a usina era um “Clube do Bolinha”, não havia mulheres trabalhando. Hoje em dia, também em função do maior grau de automação das indústrias, as mulheres já estão operando e gerenciando unidades industriais, criando assim inúmeras oportunidades de emprego para elas que na média tem escolaridade superior à dos homens.

O “causo” das caldeiras serve para ressaltar que, felizmente, a postura do setor em relação à inovação tecnológica mudou radicalmente nos últimos 25 anos. Os brasileiros, embora não disponham de centros de pesquisa avançada como outros países, tem tido a postura de testar todo e qualquer tipo de inovação que apresente chances de sucesso. Hoje em dia só não usamos tecnologia nova que não tem retorno para as nossas condições econômicas específicas. E os novos projetos “greenfield” recentemente implantados são tecnologicamente adequados para a realidade brasileira. Em todos os setores da indústria houve significativa evolução tecnológica.

O “causo” da vinhaça mostra que no quesito respeito ao meio ambiente também evoluímos muito. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas felizmente hoje os nossos jovens técnicos têm uma visão muito mais adequada daquela que eu tinha sobre meio ambiente e sustentabilidade quando comecei no setor. Felizmente!

Embora eu tenha testemunhado uma evolução notável, não podemos nos enganar. Ainda há um longo caminho a percorrer, pois sempre haverá espaços para a inovação e as novas ideias! 

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br