Desenvolvimento do processamento de cana no século XXI
Parece que foi ontem, quando nos mudamos para a nossa nova sede própria durante o recesso do Natal na virada do milênio. Mas 20 anos do novo século já se passaram e foi um período marcante no Brasil e no mundo com relação à tecnologia para o processamento de cana. Desta maneira queremos usar o espaço desta edição para um breve relato dos desenvolvimentos recentes.
No Brasil a década de 2004 a 2014 foi particularmente intensa em novos desenvolvimentos. Foi uma época na qual a grande demanda por etanol e por energia elétrica possibilitou muitos novos investimentos com previsão de retorno satisfatório, sendo natural que novos investimentos tragam nova tecnologia e mais apetite dos investidores para correr riscos testando novos processos e novos equipamentos.
Já no último quarto do período, a partir de 2015, o panorama mudou bastante e o foco da nova tecnologia passou de aumento de capacidade para otimização de resultados. Os investidores agora buscam tecnologia para reduzir os custos industriais e para aumentar a recuperação do açúcar da cana. Os vetores principais desta mudança são o excesso de açúcar ofertado, causado por países protecionistas como a Índia mas sem dúvida também pela tendência no mundo desenvolvido em reduzir o consumo, a rápida evolução do carro elétrico que deixa os produtores de combustíveis líquidos inseguros com relação ao o que vai ocorrer com o seu mercado e em quanto tempo, sem contar o aumento de produção de etanol de milho associado com a cana a qual sempre incentivamos (vide em nosso site o texto da edição setembro/outubro 2014 da Revista STAB) e finalmente a concorrência intensa de novas fontes renováveis de energia elétrica (eólica e solar) com preços reduzidos que inviabilizam a biomassa do ponto de vista econômico.
Mesmo com cenário econômico negativo acima descrito, ainda é preciso encarar outros desafios:
- A mudança definitiva para cana verde colhida mecanicamente.
- A necessidade de melhorar a qualidade do açúcar com a cana verde em um mercado vendedor.
- A necessidade de agregar valor à cana como fonte energética na forma de etanol e de energia.
- A necessidade de buscar processos e instalações que atendam às normas mais exigentes de SSMA.
De uma forma geral a indústria deve ser mais sustentável, mas indispensável lembrar que devemos buscar a “$u$tentabilidade” do negócio, ou seja, a adequada utilização dos recursos de pessoal e de capital é fundamental na busca do sucesso. Assim a utilização de técnicas como o NIR, para tomar decisões rápidas no processo com relação a perdas, e de tecnologia digital para otimizar as decisões gerenciais, serão indispensáveis.
A cana verde pressupõe a existência da palha, e a decisão de deixar a palha no campo ou de remover parte dela é fundamentalmente de caráter agronômico. Caso seja adequado remover parte da palha a questão passa a ser traze-la com a cana ou enfardada, questão esta que está sendo estudada em detalhes pelo Projeto Sucre. A cana picada tem como vantagem reduzir as perdas de sacarose em função do tempo mais curto entre colheita e moagem, mas tem como desvantagem trazer mais impurezas vegetais e minerais. Os sistemas de limpeza a seco (SLS) disponíveis ainda não estão definitivamente consolidados, já que apresentam baixa eficiência de separação, principalmente quando há orvalho ou após períodos de chuva, e apresentam baixa eficiência de separação das impurezas minerais. Já sistemas de lavagem da palha que estão sendo testados apresentam o inconveniente de usar mais água. Houve tempo no qual a implantação do SLS poderia ser amortizada pela geração adicional de energia, mas a nosso ver a grande vantagem do sistema é aumentar a capacidade e a extração e reduzir custos e paradas de manutenção. O processamento intensivo de palha traz também um novo desafio com relação ao projeto das caldeiras, em função dos níveis de enxofre e cloro presentes nos gases de combustão.
No setor de extração o processo com moendas ainda é predominante em relação ao processo com difusor. O difusor passa a ser um equipamento mecanicamente complicado para grandes capacidades, já que o seu leito tem na prática comprimento e altura definidas e somente podemos aumentar capacidade com uma maior largura. Já a moenda tem a sua capacidade definida em função do volume dos rolos e da sua rotação, com a vantagem de o volume dos rolos variar com o quadrado do seu diâmetro. Maiores rotações aumentam sua capacidade, mas dificultam a drenagem do caldo, dificuldade esta que nos últimos anos foi muito reduzida pela introdução dos Rolos Lotus com tecnologia moderna que evita entupimentos e proporciona maior vida útil. O difusor é mais suscetível ao processamento de cana com alto grau de impurezas, que dificultam a percolação do caldo através do leito, anulando na prática a pretensa vantagem de um maior nível de extração. Já o sistema de acionamento e de transmissão das moendas foi muito melhorado nas últimas décadas, com acionamento por motor elétrico com inversor de frequência e transmissão mecânica, ou com motor elétrico sem inversor de frequência e transmissão hidrostática. Estas soluções têm custo de manutenção mais baixo e na prática também anulam a pretensa vantagem de um menor custo de manutenção do difusor, já que o bagaço proveniente do difusor, com muito mais impurezas, aumenta significativamente os custos de manutenção nas caldeiras. Há relatos de usinas na Índia operando com difusor sem sistema de clarificação do caldo, mas trata-se de uma solução que não se aplica no processamento de cana verde picada com alto grau de impurezas.
No setor de clarificação do caldo os clarificadores sem bandejas com superfície de decantação e tempo de retenção adequados estão definitivamente consolidados. Recentemente foram introduzidos clarificadores com sistemas de lamelas similares àqueles utilizados em tratamento de água, para acelerar a decantação e reduzir o tempo de residência. Mas trata-se de uma técnica pouco recomendável para o caso do Brasil, onde devemos trabalhar com caldo para produção de etanol sem ou com pouca correção de pH, aumentando o risco de contaminações.
No setor de filtração do lodo uma alternativa adequada para o filtro rotativo a vácuo tem sido o filtro prensa com ou sem sistema de vácuo, principalmente nos países da América Latina. Como sempre cada tecnologia tem os seus prós e contras, mas o filtro prensa tem se adaptado bem às condições específicas do Brasil (vide em nosso site o texto da edição setembro/outubro 2018 da Revista STAB). A utilização de centrífugas horizontais (decanter) está sendo testada na Índia, mas com uma cana cuja qualidade que não se compara com a cana verde picada.
No setor de evaporação vai se tornando cada vez mais popular o conceito de evaporador tipo multi-calandras com filme ascendente em passe único e com sistema de separação de arraste em um vaso central específico, o qual os sul africanos denominam tipo Kestner quando os tubos têm um comprimento maior na faixa de 6,0 a 7,0 m. Este sistema facilita a limpeza regular dos tubos respeitando as normas brasileiras relativas a espaços confinados e proporciona um menor tempo de residência do caldo (vide em nosso site o texto da edição janeiro/fevereiro 2019 da Revista STAB).
No setor de clarificação de xarope também estão sendo propostos equipamentos com lamelas visando aumentar a taxa de aplicação em m/h (divisão da vazão na entrada pela superfície de flotação) dos equipamentos existentes. Trata-se de uma técnica mais apropriada para usinas que necessitam produzir açúcar branco direto de alta qualidade com alta recuperação (mel final muito esgotado).
No setor de cristalização os tachos contínuos com as mais diversas tecnologias tem sido os equipamentos indicados para plantas novas ou para expansões de produção de açúcar. Os equipamentos para medição em tempo real da cor do açúcar poderão vir a ser indispensáveis caso se pretenda reduzir custos decorrentes de lavagem excessiva nas centrífugas de massa cozida.
No setor de secagem e resfriamento de açúcar foram introduzidos os resfriadores a placas com água gelada, os quais permitem um efetivo controle da temperatura do produto com menor consumo de energia e com menor potencial de formação de pó. Sistemas selados de transporte pneumático de açúcar seco tipo fase densa têm sido aplicados com sucesso, mas infelizmente ainda implicam em um investimento elevado e um maior consumo de energia.
No setor de produção de etanol a fermentação em bateladas continua sendo majoritariamente adotada, com a tendência de procurar entregar vinho fermentado com alto teor alcoólico em decorrência de um bom controle da temperatura. Sistemas de destilação “integrados” buscam uma otimização do balanço energético aproveitando calor residual para a concentração de vinhaça e vice-versa. Destilação sob vácuo ainda se aplica apenas para plantas de pequena capacidade, em função dos altos investimentos envolvidos.
No setor de tratamento de vinhaça existe a tendência de aumentar a sua concentração visando produzir adubo líquido ou a sua incineração. No Brasil a tendência majoritária tem sido a busca econômica pela produção de biogás. Na Índia a tendência tem sido a sua incineração com a recuperação do potássio junto com as cinzas das caldeiras especialmente projetadas para esta finalidade.
No setor de geração e exportação de energia o ciclo termodinâmico com vapor motriz a 68 bar(a) e 525 oC tem mostrado ser o mais economicamente viável, na prática gerando excedentes na faixa de 70 kWh/tc quando processando cana picada com 12,5% de fibra sem palha adicional. Com fibra mais alta e palha adicional os excedentes podem aumentar muito, dependendo das características do projeto, mas é sempre necessário verificar a viabilidade econômica em função do preço da energia (vide em nosso site o texto da edição maio/junho 2017 da Revista STAB).
Em resumo, como a indústria do processamento de cana é muito antiga e já atingiu um bom grau de maturidade, os desafios no curto prazo estão ligados à redução dos custos de produção em função de uma otimização da tecnologia e de uma melhor eficiência na operação. Custos industriais são reduzidos com ganhos de escala, razão pela qual seguirá a tendência de aumento de capacidade das unidades. Lucros adicionais são obtidos com subprodutos, no curtíssimo prazo etanol e energia elétrica. E com associação de agroindústrias correlatas que necessitem de energia, da qual a cana é superavitária, como plantas para produzir etanol de milho e ração animal por exemplo.