Cana e Milho: Matérias Primas Concorrentes ou Complementares?
O Programa RenovaBio (Política Nacional de Biocombustíveis), instituído pela Lei 13.676/2017, indica a elevação da produção anual de etanol de 35 para 52 milhões de m3 até 2030, visando expandir a produção de biocombustíveis no Brasil. Estes 17 milhões de m3 adicionais de etanol podem ser produzidos com 200 milhões de t de cana ou com 45 milhões de t de milho por ano, aproximadamente.
Como a cana é superavitária em energia para o seu processamento, esta produção adicional de cana, sem considerar palha adicional, permitiria a exportação de cerca de 14.000 GWh de energia elétrica por ano.
Como o milho necessita de energia térmica e de energia elétrica para o seu processamento, esta produção adicional de milho adicional exigiria cerca de 58,5 milhões de t de vapor e cerca de 4.500 GWh de energia elétrica por ano.
Nas primeiras duas décadas deste século a área plantada de milho no Brasil cresceu muito mais (cerca de 1.400%) do que a de cana (apenas cerca de 150%), levando a uma “concorrência por terras” entre canaviais e grãos. Os mercados globais aumentaram mais para os grãos, principalmente por causa da demanda de proteína animal nos países emergentes e nos desenvolvidos, e especialmente na Ásia.
Mas haveria alguma racionalidade técnica ao considerarmos as duas culturas como concorrentes?
A principal diferença entre as duas matérias primas decorre de que o milho é uma commodity, que pode ser negociada em bolsa e armazenada durante algum tempo, além de poder ser transportada em maiores distâncias em função do seu baixo teor de umidade. Já a cana é uma matéria prima perecível, com cerca de 70% de água, que não pode ser estocada e que não deve ser transportada em longas distâncias, exigindo do seu produtor um plano de negócios com planejamento por um período de no mínimo dez anos.
Uma analogia corrente no setor agrícola diz que milho é “namoro” e cana é “casamento”. O que é melhor, namorar ou casar? Outra analogia diz que milho é uma aplicação financeira de curto prazo e risco maior (bolsa), cana é uma aplicação de longo prazo e risco menor (renda fixa). O que é mais recomendado? Na nossa opinião, a melhor abordagem é levar em conta a complementariedade das duas matérias primas, sem considera-las necessariamente como concorrentes.
O milho com aproximadamente 15% de água é pouco perecível, podendo ser transportado e estocado para ser processado durante todo o ano, inclusive no período chuvoso. Para se processar milho não são necessários investimentos no setor agrícola, mas sim um plano de negócios com planejamento para garantir suprimento de milho com preços adequados. Como o Capex de uma planta de milho é relativamente baixo, se o preço do milho disparar é possível operar apenas durante um período do ano respectivo.
A grande vantagem da cana é a energia excedente decorrente do seu processamento. A grande desvantagem do milho é a necessidade de fontes externas de energia térmica e de energia elétrica para o seu processamento. Para a avaliação da viabilidade econômica da produção de etanol de milho, o fator mais importante é sem dúvida o preço do milho, o segundo fator em relevância é o preço de venda do DDGS e o terceiro fator em importância é o custo da energia térmica e elétrica.
Visando maximizar a eficiência do uso da energia renovável da cana, combinar as duas matérias primas é uma decisão muito lógica considerando as condições específicas do Brasil.
Tipicamente, quando processamos cana visando produzir apenas etanol e exportar 70 kWh/tc sem palha adicional, usamos 70% do vapor motriz em ciclo termodinâmico de cogeração (eficiência na faixa de 75%) e usamos 30% do vapor motriz em ciclo termodinâmico de geração pura (eficiência na faixa de 25%), o que resulta numa eficiência global do ciclo termodinâmico na faixa de 60%. Quando trazemos palha adicional, que é utilizada apenas para geração pura, diminuímos ainda mais a eficiência global do ciclo.
Considerando agora as estimativas de cana e de milho adicionais indicadas no início do texto, podemos fazer um exercício teórico visando eliminar definitivamente o ciclo termodinâmico de baixa eficiência de geração pura, tendo como objetivo de produzir os mesmos 17 milhões de m3 adicionais de etanol.
Vamos considerar o processamento adicional de 100 milhões de t de cana e de 22,5 milhões de t de milho por ano, ficando a metade da produção adicional de etanol para cada matéria prima. Para projetos greenfield em áreas pioneiras de cana, podemos considerar 20 usinas processando 5,0 mmtc cada uma, com ritmo de moagem de 1.000 t/h durante 5.000 h efetivas com eficiência de tempo de 80% (safrinha de 1.250 h).
Vamos considerar também 20 plantas de etanol de milho anexas às novas usinas de cana, processando o milho durante 8.040 h efetivas (720 h para manutenção anual compulsória das caldeiras), sendo 6.250 h durante a safra/safrinha e 1.790 h durante a entressafra. Para processar as 22,5 milhões de t de milho por ano, a capacidade seria de 140 t/h de milho.
Durante o período de safra (5.000 h efetivas), o consumo de vapor de processo estimado foi de 385 t/h (cana) e de 185 t/h (milho). O consumo de energia elétrica estimado foi de 30 MW (cana) e de 15 MW (milho, sem UTE). A geração de energia elétrica estimada foi de 100 MW, permitindo assim uma exportação de 55 MW.
Durante os períodos de safrinha (1.250 h efetivas) e de entressafra (1.790 h efetivas), o consumo de vapor de processo estimado continua sendo de 185 t/h (milho). O consumo de energia elétrica estimado foi de 17 MW (milho, com UTE). A geração de energia elétrica estimada foi de 32 MW, permitindo uma exportação de 15 MW.
Para simplificar nossos cálculos, consideramos que todo o bagaço seria usado na safra produzindo 570 t/h de vapor motriz. Desta maneira, para gerar o vapor motriz estimamos a necessidade de bagaço na safrinha de 110.000 t e na entressafra de 160.000 t, num total de 300.000 t, já considerando uma reserva para as partidas e paradas. Este total de bagaço com 50% de umidade corresponde, aproximadamente, a um total de 230.000 t de palha com 35% de umidade o qual, por sua vez, corresponde a 4,6% da cana moída. O estoque de bagaço equivalente para a entressafra ficaria na faixa de 200.000 t (pátio de 250 m x 250 m x 12 m de altura).
Concluímos assim que trazendo cerca de 5% de palha adicional sobre a cana temos a energia suficiente para produzir etanol de milho na mesma quantidade produzida pela cana, ou seja, temos energia térmica e elétrica suficiente para dobrarmos a produção de etanol.
No lugar da exportação de 70 kWh/tc, vamos exportar 64 kWh/tc, ou seja, por ano passamos a exportar 6.400 GWh e deixamos de comprar 2.250 GWh de energia elétrica. A soma destes valores corresponde a cerca de 60% da exportação máxima estimada antes, mas em troca obtivemos toda a energia térmica para processar o milho, e com um ciclo termodinâmico muito mais eficiente, na faixa de 75%.
Para simplificar os cálculos, não incluímos nesta conta o potencial do biogás para a geração de energia elétrica e, eventualmente, para geração de vapor de processo com os gases de combustão no caso do uso de turbinas a gás.
Chegamos assim à relação cana / milho que equilibra o consumo de energia: 4,5 t cana / 1,0 t milho.
Para cada 4,5 t de cana processada na safra, dispomos de energia suficiente para processar 1,0 t de milho durante o ano todo. Dobramos a produção de etanol e ainda continuamos a exportar energia elétrica, ainda sem considerar o potencial energético do biogás.
As fontes de energia renovável podem ser classificadas basicamente em intermitentes (eólica, fotovoltaica), em sazonais (cana, UHE) e em permanentes (UTE com cavaco de madeira, biogás de RSU). Como estas fontes renováveis têm como concorrentes formidáveis as fontes de energia fóssil (baixo custo, alta disponibilidade), a competitividade das fontes renováveis aumenta quando conseguimos tratá-las como fontes de energia complementares.
Não faz sentido considerarmos que no Brasil cana e milho são matérias primas concorrentes para a produção de etanol. Mais racional é considerarmos que são fontes de energia renovável complementares, cujo processamento associado permite aumentar a eficiência do ciclo termodinâmico resultante da queima do bagaço da cana dos atuais 60% para até 75%.