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Vantagem Comparativa e Ecocídio STAB - Mar/Abr 2005

Março trouxe duas resoluções governamentais que afetam diretamente os custos operacionais das unidades industriais produtoras de açúcar e de álcool. Uma delas diz respeito à aplicação de vinhaça e a outra à captação de água das bacias hidrográficas. Estes fatos, aliados à leitura recente de dois livros muito interessantes, são a base de temas para discutirmos neste espaço.

O primeiro livro chama-se “AUTO ENGANO”, do Dr. Eduardo Giannetti da Fonseca. O autor explica como a natureza submete tudo o que vive ao jugo de duas exigências fatais: manter-se vivo e reproduzir a vida.

Para atender a estas exigências todos os seres vivos dos reinos vegetal e animal estão sempre em forte competição e conflito na disputa por recursos escassos. A natureza é desprovida de escrúpulos. Um organismo fará tudo que estiver ao seu alcance para atender às suas necessidades prementes. Para atingir estes objetivos, a arte do engano (o uso pelo organismo de traços morfológicos e de padrões de comportamento capazes de iludir os sistemas de ataque e de defesa dos outros seres vivos) é parte expressiva do arsenal de sobrevivência e de reprodução no mundo natural. Todos os seres vivos estão sempre procurando enganar outros seres vivos.

O homem faz parte da natureza e é um ser, por hipótese, racional. A racionalidade humana baseia-se em duas operações distintas: o cálculo dos meios e a análise dos fins. Mas o cálculo e a prudência (a sobriedade analítica e a acuidade psicológica do pensamento racional) tornam os homens irremediavelmente céticos e mesquinhos diante das ambições humanas de criação e de grandeza. Em qualquer projeto ousado e inovador no mundo empresarial, há sempre uma profusão de razões impecavelmente lógicas e objetivas para não embarcarmos nele.

Mas, embora racional, o homem pratica o auto engano. Sob o olhar gelado da razão os meios esfriam e os fins definham. Mas o empreendedor não cede. A certeza subjetiva do sucesso que o impele à frente, embora falsa para a maioria, fala mais alto que a opressiva probabilidade objetiva do fracasso. Poderíamos também dizer este impulso inexplicável é vocação que existe em cada um de nós.

Estamos desenvolvendo vários projetos de plantas novas, ao lado de inúmeros outros que temos notícia. A maioria deles busca inicialmente a produção principalmente de álcool. Como o mercado está aquecido, o preço do aço disparou e equipamentos usados desapareceram, os valores altos de investimento inicial normalmente assustam os empresários. Surge então a inevitável discussão sobre o custo de oportunidade, ou seja, o consultor financeiro que diz que o empreendimento deveria ter um retorno pelo menos igual àquele que teríamos se emprestarmos o dinheiro para o Lula para receber 15% ao ano sem fazer nada.

Nesta hora um pouco de auto engano é indispensável. Temos que estar convencidos de que a vocação do Brasil a longo prazo é tornar-se a principal fonte de biomassa do mundo. Temos que acreditar que, uma vez instalada a necessária capacidade de produção de cana e de álcool, países como o Japão por exemplo vão entrar decididamente em programas para o uso de combustíveis renováveis. Temos que lutar para que o etanol seja no futuro a base para a produção do combustível para os motores a hidrogênio. O importante é continuar produzindo a cana de açúcar de menor custo do mundo para as épocas de preços baixos, pois na certa virão desajustes momentâneos entre oferta e demanda.

Felizmente há muitos empresários praticando o auto engano em nosso setor. Como conseqüência, a tendência é termos uma crescente produção de cana, açúcar e álcool nos próximos anos. Maior produção de álcool vai significar maior produção de vinhaça, e este fato nos remete ao segundo livro.

O segundo livro chama-se “COLLAPSE – How Societies Choose to Fail or Succeed”, do Dr. Jared Diamond. O autor discute como a escolha de determinados comportamentos, feita por várias sociedades no passado e no presente, determinou o seu sucesso ou o seu declínio, e eventualmente até a sua extinção.

Naturalmente há causas diversas como guerras, disputas comerciais e mudanças climáticas causadas por fenômenos naturais, entre outras. Entretanto, há também inúmeros casos de sociedades que praticamente desapareceram porque causaram danos irreversíveis ao seu meio ambiente, como por exemplo a destruição de florestas ou a degradação do solo por causa de práticas inadequadas de agricultura ou de irrigação. O Dr. Diamond diz que nestes casos estas sociedades cometeram “ecocídio”, um suicídio ecológico. Um exemplo marcante é a conhecida Ilha de Páscoa localizada no Oceano Pacífico, famosa pelas suas enormes estátuas esculpidas em pedra (Moai), que no passado motivaram autores sonhadores até a defender a hipótese de terem sido construídas por astronautas. Estudos científicos recentes provaram que a ilha era originalmente coberta por densa floresta tropical com as maiores palmeiras que já existiram sobre a face da Terra. Pôde ser assim comprovado que estas palmeiras forneceram matéria prima para as cordas e as pranchas necessárias para a instalação das enormes estátuas. Infelizmente a ocupação humana desordenada causou um desequilíbrio ecológico que levou à quase extinção da flora e fauna locais e à decadência da sociedade ali instalada, originária da Polinésia.

Sociedades modernas como a nossa, com todo o grau de conhecimento hoje disponível, não têm a menor desculpa para incorrer em erros deste tipo. É nossa responsabilidade como técnicos tomar todas as providencias para proteger o nosso meio ambiente.

A CETESB emitiu em 09 de Março passado a Norma Técnica P4.231, a qual dispõe sobre os critérios e procedimentos para a aplicação de vinhaça em solo agrícola.

O CNRH (Conselho Nacional de Recursos Hídricos) emitiu em 22 de Março passado, Dia Mundial da Água, resolução definindo as regras para a cobrança de taxa dos consumidores de água de todas as bacias hidrográficas do país.

Embora tais iniciativas possam mexer no bolso dos empresários, temos que recebê-las com a perspectiva otimista de que elas vieram para proteger o meio ambiente das nossas gerações futuras.

A cobrança para a água vem em bom momento. Damos mais valor àquilo que nos é cobrado. Um exemplo típico ocorreu durante o “apagão” de 2001, quando fizemos economia de energia que sequer imaginávamos ser possível. Conforme discutimos anteriormente aqui, temos que adotar como meta a captação máxima de 0,5 m3/t de cana processada. O sistema de água adotado depende basicamente do setor industrial. O setor agrícola pode ajudar entregando cana da melhor qualidade possível, visando eliminar a necessidade de lavagem de cana.

As regras para a aplicação da vinhaça vem em melhor momento ainda. Esta aplicação deve ser conduzida com muita responsabilidade, devidamente acompanhada dos procedimentos para a avaliação do solo e do lençol freático. Se a captação de água depende mais do setor industrial, a gestão da produção e da distribuição da vinhaça deve ser um trabalho a quatro mãos entre o setor industrial e o setor agrícola.

O setor agrícola deve definir claramente as suas necessidades de irrigação, as necessidades de transporte por caminhão, a temperatura máxima permitida no sistema, e assim por diante.

O setor industrial deve planejar para atender as necessidades do setor agrícola. Para produzir menos vinhaça a providencia mais importante é projetar sistemas de fermentação que produzam vinho com o maior teor alcóolico possível. Separar a flegmaça da vinhaça. Usar aquecedores indiretos na coluna de destilação quando necessário. E naturalmente reduzir os efluentes líquidos de uma maneira geral, procurando aproveitar o máximo possível os condensados no processo de fabricação.

A quase totalidade dos países potencialmente produtores de álcool não possui uma estrutura agro-industrial tão favorável para a distribuição da vinhaça no solo agrícola como o Brasil. O Brasil tem uma enorme vantagem comparativa porque produz cana de baixíssimo custo. Mas tão importante quanto ter a matéria prima mais barata, é dispor de uma solução tecnológica também barata e ecologicamente adequada para a disposição da vinhaça.

A vinhaça nunca será prejudicial aos nossos solos ou às nossas águas subterrâneas se for distribuída no solo agrícola com responsabilidade. Como cidadãos e como técnicos, é nossa obrigação zelar para que isto ocorra.

Já a adoção de soluções exóticas baseadas em realidades completamente distintas da nossa, como está ocorrendo por exemplo nas usinas da Colômbia, é a nosso ver pura perda de tempo e de dinheiro. É procurar resolver o problema da vinhaça criando dificuldades imensas na fermentação, impossibilitando na prática a obtenção de ótima eficiência fermentativa. É jogar fora parte da nossa vantagem comparativa. Um “tecnicídio” enfim.

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br