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Enquanto o Hidrogênio não Chega STAB - Jan/Fev/Mar 2023

O autocrata Putin, que não consegue aceitar o fato de que o povo ucraniano prefere viver sob a influência europeia e americana no lugar da russa, o que implica em adotar todos os respectivos valores civilizatórios daí decorrentes, iniciou uma guerra que acaba de completar o seu primeiro aniversário. Guerra que foi baseada em uma chantagem energética imposta aos países europeus, construída ao longo de décadas com a crescente dependência do gás natural (GN) fornecido pela Rússia.

Com a guerra surgiram os inúmeros defensores da substituição imediata do GN pelo hidrogênio verde, que pode ser produzido a partir da eletrólise da água com energia elétrica gerada a partir de fontes renováveis, em particular a solar e a eólica. Na teoria funciona bem, mas na prática o hidrogênio é um combustível que, por questões técnicas e de segurança, exige altos investimentos para armazenamento, transporte e distribuição. É provável que o hidrogênio seja adotado como combustível no futuro, mas não será um processo rápido e muito provavelmente não deverá ser adotado globalmente para fins de mobilidade veicular.

No Hemisfério Norte, visando suprir a demanda de energia para as necessidades de mobilidade humana e de cargas, a tendência no momento é a substituição gradativa da frota existente por veículos elétricos. Resta definir a partir de quais fontes renováveis esta energia elétrica adicional necessária para a mobilidade será gerada.

No Brasil, classificado como o terceiro maior país consumidor mundial de energia para mobilidade, atrás de EUA e China, mas ainda à frente de Índia (que pode nos superar em breve), Japão e Rússia (que com a guerra está regredindo), a larga utilização do etanol permite adotarmos uma rota alternativa para o uso de veículo elétrico equipado com baterias.

Como o etanol possui um elevado teor de hidrogênio na sua molécula, na prática o Brasil já tem instalada uma enorme rede para distribuição de hidrogênio, sem as restrições de altos investimentos e de segurança mencionadas acima. São os mais de quarenta mil postos de combustíveis instalados em todo um país com dimensões de continente, que podem fornecer o hidrogênio para acionar os motores elétricos veiculares utilizando a tecnologia da célula de combustível.

Mas na última década o que temos visto é um aumento significativo da produção de etanol de milho e uma estabilização na capacidade de produção de etanol de cana. Na primeira década deste século tivemos uma grande expansão na produção de cana, mas em meados da segunda década o horizonte mudou. O desalento começou quando o governo Dilma procurou segurar a inflação controlando o preço dos combustíveis, e ficou mais acentuado com a chegada dos primeiros veículos elétricos com bateria, eventos que colocaram dúvidas nos investidores com relação ao futuro potencial do mercado de etanol para mobilidade.

Ao contrário do milho, a cana não é uma commodity. O capex de uma planta nova de etanol de milho é muito mais baixo do que uma de cana (sem contar a lavoura), e o investidor pode ter seu retorno a curto/médio prazo. Quem investe em uma nova usina de cana deve ter em mente um planejamento de mercado para pelo menos 30 anos. A indefinição de qual tecnologia acabará sendo adotada para a mobilidade no Brasil inibe decisões de investimento em produção adicional de cana, restando a possibilidade de instalar plantas de milho anexas às de cana já existentes, o que aumenta muito a eficiência energética industrial do conjunto.

A indústria automobilística desenvolveu-se de forma globalizada nas últimas décadas, um ciclo que foi de certa maneira interrompido pela pandemia de 2020 e pela guerra de 2022. A pandemia trouxe problemas para as cadeias globais de suprimento de componentes, e a guerra trouxe o deslocamento da indústria automotiva da Rússia para outros países, principalmente para a Índia, país que também planeja a adoção do uso do etanol para mobilidade.

No Brasil a última década mostrou uma redução na produção veicular, decorrente em parte dos aspectos mencionados acima, mas também em razão de falta de integração do nosso país com as cadeias globais de suprimento.

Assim Brasil e Índia, com grande potencial para produção de etanol, têm o enorme desafio de desenvolver uma produção em escala global de veículos com a tecnologia da célula de combustível, criando uma escala de demanda adequada para possibilitar o uso do hidrogênio renovável para mobilidade. Escala de produção veicular nos países produtores de etanol será fundamental para baixar o custo dos veículos com esta nova tecnologia, já que provavelmente os países do Hemisfério Norte relutarão muito em ficar dependentes dos países produtores de etanol, como ficaram dependentes do GN russo os países europeus.

Como via de regra as energias renováveis são mais caras do que as energias fósseis, a nossa sociedade tem que desenvolver políticas públicas adequadas, como o RenovaBio, para que o desafio do uso do hidrogênio veicular possa ter uma solução econômica viável, com o seu custo sendo transferido para a parcela da população que efetivamente usa o transporte veicular correspondente.

Mas voltando agora ao título deste texto, o que fazer enquanto o uso do hidrogênio veicular não chega?

Com a demanda de etanol crescendo de forma vegetativa, resta aumentar a eficácia da produção e do processamento da cana, com as tecnologias já comercialmente consolidadas e com as tecnologias em desenvolvimento atualmente.

A eficiência das tecnologias já consolidadas certamente poderá ser incrementada com a aplicação de Inteligência Artificial (IA), prática que já teve início há alguns anos, mas que tem ainda um enorme potencial adicional. A IA vai permitir a otimização em tempo real de todos os parâmetros operacionais da indústria, garantindo a máxima eficácia global no processamento da cana, mantendo assim as empresas saudáveis do ponto de vista financeiro para os desafios futuros.

Outras novas tecnologias que podem ser técnica e economicamente consolidadas são, por exemplo, a produção de biogás para geração de energia elétrica ou de biometano para mobilidade (substituição do óleo diesel nas usinas). Outro enorme desafio será a viabilização econômica da produção de etanol 2G com preço acessível para uso no mercado interno.

 

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br