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Enigmas e Paradigmas STAB - Mar/Abr 2010

Queremos desta vez discutir alguns enigmas e paradigmas. Consultando o Aurélio, vemos que paradigma é sinônimo de “modelo”, de “padrão”. Já enigma significa “aquilo que é difícil compreender, uma coisa obscura”.

Nas nossas atividades, qualquer técnica normalmente é implementada quando uma comunidade de usuários em determinado setor chega a um consenso em torno de um “paradigma”, isto é, de uma teoria que funcione como o fundamento de uma pesquisa e de uma prática subseqüentes. Assim foi, por exemplo, durante a Idade Média com a astronomia geocêntrica de Ptolomeu (para ele a Terra seria o centro do Universo). Adotado certo paradigma, o trabalho dos cientistas passa a ser o que os pensadores chamam de “ciência normal”. Esta se dá com o trabalho rotineiro de pesquisa e de solução de enigmas, a partir do paradigma adotado.

O paradigma dominante é então ferrenhamente defendido pelos cientistas (Galileu que o diga, ele quase foi para a fogueira da Igreja porque não concordava com o geocentrismo!). Com o tempo, porém, acumulam-se enigmas insolúveis nos quadros do paradigma. A ciência então entra em “crise”. Com isso, torna-se concebível a adoção de um novo paradigma, capaz de solucionar pelo menos os mais importantes desses enigmas ou anomalias. Quando ele é encontrado ocorre uma revolução científica. Assim foi a astronomia heliocêntrica de Copérnico (para ele o Sol seria o centro do Universo), ao substituir a geocêntrica de Ptolomeu. Repete-se então todo o processo. Como sabemos hoje, nem a Terra e nem o Sol estão no centro do Universo.

Com um pouco de filosofia na bagagem, vamos agora voltar para as nossas usinas e procurar aplicá-la visando mudar alguns paradigmas. Começamos com a preparação da cana.

Para desenvolver projetos de plantas novas para o processamento de cana começamos o nosso trabalho escrevendo um documento chamado Bases do Projeto, o qual descreve as características principais do novo empreendimento. Geralmente está escrito neste documento que a nova planta vai processar 100% de cana verde picada. Mas mesmo assim os fornecedores de equipamentos conseguem vender picadores de cana para os clientes.

Surge assim um primeiro enigma: “Por que instalar picador de cana picada?”. A cana já vem picada!

Já discutimos na edição da Revista STAB de Maio / Junho de 2003 sobre a utilização de desfibrador pesado sem a utilização de picadores de cana. Naquela época foi descrito o equipamento que pode processar também cana inteira, com a instalação de niveladores e adensadores especiais. Porém, com 100% de cana picada, a decisão de desfibrar a cana em apenas um rotor é absolutamente evidente. É natural!

Esta concepção de sistema de preparação de cana apresenta a vantagem de obter sempre alto índice de preparo (IP) com no máximo o mesmo nível de potência instalada na solução convencional com picador e desfibrador leve. Porém é um IP de alta “qualidade”, pois apresenta muito menor quantidade de finos na cana desfibrada, fator muito importante quando se utiliza difusor, mas que também traz vantagens para a “pega” da moenda.

Já a concentração de toda a potência em um único equipamento permite a utilização de menor número de acionadores de alta eficiência. Os tempos gastos em manutenção são também menores, em função do menor número de equipamentos envolvidos na operação de preparação da cana.

Podem também ser adotados desfibradores verticais alimentados por transportadores de correia, os quais são perfeitamente adequados para o transporte de cana picada. Solução típica usada na Austrália.

Propomos assim adotar um novo paradigma: “Preparação de cana picada se faz apenas com um único desfibrador, horizontal ou vertical”. Niveladores e picadores viram peças de museu. Como no tempo de Galileu, sempre vai haver os ferrenhos defensores da velha ordem, mas será apenas uma questão de tempo.

Mudando agora de assunto, vamos falar um pouco de perdas no mel final. A página 730 da edição de Dezembro de 2009 do International Sugar Journal traz um trabalho muito interessante de autoria dos técnicos da África do Sul D.J. Love e D.J. Muzzell.

Eles escrevem a respeito das técnicas para se minimizar as perdas de sacarose no mel final. E escrevem de uma maneira muito inteligente, criando o que eles denominaram as “Três leis das perdas no mel final”. Basearam a estrutura do trabalho nas “Três Leis da Robótica”, de autoria de Isaac Asimov:

  • Primeira Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, em função da sua inação, permitir que um ser humano seja ferido.
  • Segunda Lei: Um robô deve obedecer às ordens dadas a ele por seres humanos, exceto nos casos nos quais tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
  • Terceira Lei: Um robô deve proteger a sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira Lei e a Segunda Lei.

As Leis de Asimov incorporam o interessante conceito de que é possível definir critérios de conduta importantes a partir de um pequeno conjunto hierárquico de leis fundamentais. Com esta mesma abordagem os técnicos sul africanos definiram as “Três leis das perdas no mel final”:

  • Primeira Lei: A quantidade de não-sacarose no mel final deve ser minimizada porque, para uma dada pureza P, cada unidade de não-sacarose vai carrear consigo P/(100-P) unidades de sacarose.
  • Segunda Lei: A pureza atingível do mel final ou pureza meta (target purity) deve ser mantida a mais baixa possível, exceto quando isto contrariar a Primeira Lei.
  • Terceira Lei: A pureza real do mel final deve ser reduzida para o mais próximo possível da pureza meta (ou o que seria melhor, abaixo desta meta), exceto quando isto contrariar a Primeira Lei e a Segunda Lei.

Os enunciados são perfeitos, sendo um bom exemplo de leis simples e fundamentais que resumem os procedimentos para quem quer recuperar o máximo de sacarose. No texto original os autores discutem em detalhes a aplicação e as implicações das três leis na prática, sendo a leitura recomendada, já que tecnicamente o trabalho é impecável.

O que nos chama a atenção é que, para colocar em prática os procedimentos decorrentes destas três leis, são necessários equipamentos e instalações que exigem alto investimento e técnicas de operação e de controle muito especiais, sendo que no final das contas a quantidade adicional de açúcar efetivamente recuperada é relativamente pequena. Sem contar que fica muito mais difícil garantir a qualidade do açúcar.

Surge assim um segundo enigma: “Compensa tanto sacrifício para baixar a pureza do mel final até o mínimo possível?”.

Nós achamos que não e gostaríamos de propor para os colegas sul africanos, com base na técnica de Asimov, uma Quarta Lei:

  • Quarta Lei: A produção simultânea de açúcar e de etanol a partir de cana de açúcar permite revogar as leis anteriores.

Evidentemente que aspectos políticos e interesses econômicos são muito relevantes para uma decisão deste tipo em outros paises. Mas a energia renovável combinada com o uso do petróleo é uma realidade que veio para ficar.

Nós brasileiros temos assim que incentivar mundo afora a adoção de um novo paradigma para todos os paises que processam cana de açúcar: “Produção simultânea de açúcar e de etanol traz vantagens técnicas significativas para a indústria”. Produzimos açúcar de melhor qualidade e um biocombustível que não afeta a produção dos alimentos.

Com a adoção deste novo paradigma o excelente trabalho sobre o máximo esgotamento de mel final ficaria inútil? Não. As três leis passariam a valer apenas para as usinas produzindo açúcar a partir de beterraba!

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br