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Vinhaça: Biodigestão X Incineração em caldeiras BFB STAB - Jul/Ago/Set 2020

Este texto é uma continuação daquele publicado na edição abril/maio/junho de 2020 da Revista STAB, ocasião na qual procuramos fazer uma comparação técnica entre os processos de biodigestão de vinhaça, que estão sendo implantados no Brasil, e os processos de incineração de vinhaça, que já têm sido implantados nos últimos anos na Índia.

Agora nosso objetivo é, usando critérios similares aos que adotamos anteriormente na edição citada, procurar comparar o mesmo processo de biodigestão de vinhaça com um processo de incineração de vinhaça considerando a utilização de caldeiras tipo BFB (leito fluidizado borbulhante).

Da mesma maneira que a Índia tem sido pioneira na implantação de caldeiras tipo grelha para a incineração de vinhaça, o Brasil tem sido pioneiro na utilização de caldeiras tipo BFB nas usinas que visam a máxima exportação de energia elétrica.

Quando conversamos com os técnicos indianos durante o Congresso da ISSCT do ano passado na Argentina, eles informaram que a incineração de vinhaça em caldeiras tipo grelha implicava na produção do vapor motriz com temperatura máxima de 400 oC, levando assim à adoção de caldeiras de menor capacidade exclusivas para a incineração de vinhaça com brix de 60% misturada com bagaço (relação em peso 80%/20%), as quais necessitam de paradas periódicas para limpezas mecânicas nos recuperadores de calor. A limitação da temperatura do vapor motriz naturalmente implica na adoção de um ciclo termodinâmico menos eficiente para a produção de energia elétrica, pelo menos para a parcela de combustível representada pela queima da mistura de bagaço com vinhaça.

Aqui no Brasil temos observado a tendência de instalação de sistemas para concentração parcial da vinhaça, numa faixa de 20% a 30% de brix, inclusive com a adoção de sistemas de concentração integrados aos aparelhos de destilação, com o objetivo de reduzir os custos da aplicação da vinhaça no campo em função do menor volume a ser transportado e da maior eficiência na aplicação do potássio.

Os fabricantes de equipamentos de destilação confirmam que os vapores alcoólicos da coluna retificadora dispõem de energia suficiente para concentrar a vinhaça até 30% de brix se o vinho centrifugado tiver um teor de álcool de 10% v/v no mínimo. Na prática têm sido instalados sistemas com três efeitos para atender 20% de brix, já que para chegar a 30% de brix são necessários cinco efeitos e o seu custo fica bem mais elevado, em função da baixa diferença de temperatura nos evaporadores. Provavelmente a solução mais equilibrada do ponto de vista técnico e econômico seja levar até 20% de brix em sistemas integrados (caso a economia de vapor de processo justifique o investimento) e depois levar até 30% de brix utilizando V1 ou V2 com evaporadores de filme descendente.

Por outro lado, sabemos que concentrar vinhaça até 30% de brix no máximo é uma operação muito menos complicada do que concentrar vinhaça até 60% de brix no mínimo, sendo que esta faixa alta de brix costuma ser atingida em outros países com a utilização de evaporadores de recirculação forçada nos últimos efeitos, visando reduzir as necessidades de paradas devido a incrustação severa nos trocadores de calor.

Levando em conta todos os aspectos práticos acima, vamos então procurar estabelecer como seria a mesma comparação entre as alternativas Biodigestão (AB), esta alternativa com as mesmas premissas da edição anterior da Revista STAB, e Incineração (AI), mas desta vez considerando, no lugar de duas caldeiras com grelha (uma maior queimando apenas bagaço com vapor a 525 oC e outra menor queimando bagaço e vinhaça a 60% brix com vapor a 400 oC), apenas uma caldeira BFB queimando bagaço e vinhaça com três faixas diferentes de brix (20%, 25% e 30%) produzindo a totalidade do vapor motriz a 525 oC.

A caldeira BFB da AI da presente edição teria projeto similar ao da caldeira implantada em 2014 na planta da Bioflex Caeté em Alagoas, planta que foi concebida para a produção de etanol 2G e com uma caldeira que foi projetada para queimar na safra uma mistura de bagaço com vinhaça. Desta maneira, no lugar de duas caldeiras, a AI desta edição teria apenas uma caldeira com capacidade 20% maior e estaria produzindo 100% do vapor motriz com temperatura mais elevada, na faixa de 525 oC.

As diferenças fundamentais entre as duas tecnologias residem na comparação entre queimar a mistura bagaço com vinhaça em grelha rotativa ou em leito fluidizado borbulhante (BFB) e na comparação entre concentrar vinhaça parcialmente ou até 60% de brix mínimo.

A combustão em grelha não permite um controle da temperatura da fornalha, ocorrendo a volatilização do potássio contido na vinhaça e a sua posterior solidificação nas superfícies de troca térmica por convecção do superaquecedor, do feixe tubular, do economizador e do aquecedor de ar, resultando na necessidade das paradas periódicas que foram reportadas pelos técnicos indianos, mencionadas na edição anterior. Em caldeiras BFB existe a possibilidade de controle da temperatura do leito buscando um valor mais baixo próximo do requerido, controlando a volatilização do potássio e principalmente retendo o mesmo no leito, de onde poderá ser removido junto com as purgas periódicas de areia.

Outro ponto relevante é que com BFB é possível controlar em níveis aceitáveis a eventual corrosão causada pelo cloro na fornalha e no superaquecedor, já que este elemento é carreado no processo de volatilização do potássio que ocorre nas caldeiras com grelhas.

As caldeiras BFB também são mais propícias para a queima de biomassa com umidade mais alta, o que na prática é o que vai ocorrer quando misturarmos o bagaço com a vinhaça parcialmente concentrada na faixa de 20% a 30% de brix.

Os fabricantes brasileiros das caldeiras BFB informam que o potássio contido na vinhaça pode ser quase que integralmente recuperado, assim como os fabricantes indianos (95% de recuperação). No caso da caldeira BFB o potássio pode ser recuperado em parte na purga de areia do leito e em parte junto com as cinzas coletadas no separador eletrostático (ESP).

A questão que surge então é se a incineração da vinhaça em leito BFB poderia ser adotada com sucesso no Brasil. Assim este texto tem por objetivo fazer uma comparação hipotética de uma planta com mix açúcar na faixa de 50%, produzindo cerca de 500 m3/d de etanol anidro combustível e com a perspectiva de exportar todo o excedente energético na forma de energia elétrica, com biodigestão (AB) ou com incineração da vinhaça (AI).

Como na edição anterior vamos imaginar uma usina produzindo açúcar e etanol anidro com a premissa de exportar energia elétrica, processando 2,4 mmtc a um ritmo de 500 t/h durante 4.800 horas efetivas e com 85% de eficiência de tempo aproveitado, sem palha adicional para simplificar. Vamos considerar a cana com valores médios de 14,7% de ART e de 12,5% de fibra. Vamos também considerar a fermentação produzindo vinho centrifugado com 10% v/v e um volume de vinhaça de 9,0 l/l com 3,5% de brix e 35.000 ppm de DQO.

Para ambas as alternativas Biodigestão (AB) e Incineração (AI) consideramos agora apenas uma caldeira queimando bagaço e gerando vapor motriz com 68 bar(a) e 525 oC e consumindo 40% de vapor no processo. No caso AB a caldeira é com grelha e com capacidade de 250 t/h, queimando apenas bagaço. No caso AI a caldeira é BFB e com capacidade de 300 t/h, queimando bagaço misturado com vinhaça na safra.

Para a AB consideramos os biodigestores e a geração de energia com motores de combustão interna, sem concentração de vinhaça. Para a AI vamos considerar um sistema de concentração parcial de vinhaça. Em todos os casos vamos considerar operação apenas durante o período de safra, sem nenhuma geração no período de entressafra.

Os resultados obtidos em nossos estudos estão indicados de forma simplificada na Tabela 1 abaixo.

Parâmetro

Biodigestão

(AB)

Incineração com BFB

(AI)

Brix da vinhaça com concentração parcial (%)

-

20

25

30

Produção de vapor motriz na caldeira (t/h)

250

284

290

293

Geração de energia na safra e safrinha (kWh/tc)

106,9

127,1

129,8

131,4

Consumo de energia da usina na safra e safrinha (kWh/tc)

39,6

46,4

46,5

46,6

Excedente de energia exportável da usina (kWh/tc)

67,3

80,7

83,3

84,8

Geração de energia da planta anexa (kWh/tc)

12,8

-

-

-

Consumo de energia da planta anexa (kWh/tc)

0,6

-

-

-

Excedente de energia exportável da planta anexa (kWh/tc)

12,2

-

-

-

Excedente de energia exportável total (kWh/tc)

79,5

80,7

83,3

84,8

Capex da planta da planta anexa (estimativa em R$ milhões)

80 (*)

40 (**)

43 (**)

45 (**)

Opex da planta anexa (estimativa em R$/tc)

1,32

-

-

-

Aplicação do potássio recuperado na lavoura

via úmida

via seca

via seca

via seca

Opex para aplicação de potássio (estimativa em R$/tc)

(***)

(***)

(***)

(***)

(*) Biodigestores 63% e moto-geradores 37% do total.

(**) Diferença de Capex entre caldeiras tipo grelha 250 t/h (lavador de gases) e tipo BFB 300 t/h (ESP), mais concentração parcial de vinhaça.

(***) Valores que dependem das condições agronômicas específicas de cada planta.

 

A utilização de sistemas integrados de destilação com concentração, para os quais existem inúmeras opções técnicas disponíveis, pode alterar ligeiramente os resultados finais em função de menor consumo de vapor de escape no processo, sendo necessário um estudo específico caso a caso.

Na comparação anterior, considerando a fermentação sem recirculação de vinhaça, verificamos que a AI tem um Capex 12,5% menor e exporta 10,8% menos energia, mas com uma diferença de Opex a maior na planta anexa, que é representativa.

Na comparação anterior também simulamos a AI com recirculação de vinhaça, como praticado na Índia, e chegamos a uma exportação de energia de 84,3 kWh/tc, que é praticamente o mesmo valor que encontramos nesta edição considerando a caldeira BFB. Ou seja, o ciclo termodinâmico queimando vinhaça com 60% de brix (PCI mais elevado) em caldeira de grelha gerando vapor com 400 oC ficou equivalente ao ciclo termodinâmico queimando vinhaça com 30% de brix (PCI mais baixo) em caldeira BFB gerando vapor com 525 oC.

Assim a solução brasileira incinerando vinhaça parcialmente concentrada exporta praticamente o mesmo kWh/tc que a solução indiana incinerando vinhaça altamente concentrada. Na prática estamos substituindo uma caldeira adicional com grelha, de pequena capacidade e projetada para queimar vinhaça com bagaço e um sistema de concentração para 60% brix, por uma única caldeira tipo BFB com capacidade 20% maior, para queimar vinhaça com bagaço e um sistema de concentração para 30% brix.

Já a comparação entre AB e AI considerando o uso de tecnologia brasileira nos dois casos mostra que chegamos a valores de exportação de kWh/tc muito similares, já que no presente caso a AB está calculada com caldeira de grelha e a AI com caldeira BFB. Se calcularmos a AB com caldeira BFB, a maior eficiência da caldeira deve aumentar a exportação de energia na faixa de 5%, lembrando que a diferença de Capex entre as alternativas vai aumentar na faixa de R$ 30 milhões.

É interessante mencionar que, para a produção de energia elétrica, a eficiência do ciclo com motor de combustão interna a gás (na faixa de 40%) é maior do que a eficiência do ciclo Rankine com turbina de condensação (na faixa de 25%), lembrando que para a produção do biogás precisamos considerar a eficiência de conversão do biodigestor, a qual aproxima parcialmente os dois valores anteriores.

A discussão dos fatores de comparação intangíveis, cuja precificação é difícil avaliar, é basicamente a mesma da edição anterior da Revista STAB. Na prática as condições e os custos para a recuperação e/ou a aplicação na lavoura do potássio contido na vinhaça pode ser um elemento decisivo na tomada de decisões de investimento. Por outro lado, a eventual proximidade da usina com gasodutos pode ser um fator relevante no caso de eventual produção e venda de biometano.

Mas é importante voltar a ressaltar que em qualquer caso fica patente a urgente necessidade de caracterizarmos com critério o PCI da vinhaça produzida no Brasil, já que muito mais importante do que o valor do brix é definir também o teor e as características dos sólidos em suspensão presentes na mesma.

Celso Procknor
celso.procknor@procknor.com.br