Relações Perigosas
Parece nome de filme, mas na verdade trata-se de uma novela, já que volta e meia retornamos à discussão sobre as vantagens de se usar tachos a vácuo em bateladas com relação S/V (superfície/volume) 1:1 (1 m2 / 1 hl) ou maior em cozimentos de usinas de açúcar.
Voltamos a discutir com um cliente esta recomendação justamente na semana em que deveríamos redigir esta página, e assim pegamos o mote para retornar ao assunto.
Podemos iniciar a discussão com alguns fundamentos que valem para a operação cozimento, independentemente do tacho que está sendo utilizado (batelada ou contínuo).
O tacho não deixa de ser um evaporador, mas não é apenas isto. Durante o cozimento ocorre a migração da sacarose do licor mãe para os cristais presentes na massa cozida, e este fenômeno infelizmente necessita de tempo para ocorrer. Tanto que, em certos casos de dimensionamento de tachos contínuos, o tempo de residência da massa cozida é um fator mais relevante do que a própria superfície de aquecimento calculada, definindo a capacidade final do equipamento.
Chamamos de taxa de cristalização a velocidade com que a sacarose do licor mãe se transfere para os cristais, e esta taxa depende fundamentalmente do grau de supersaturação e da pureza do licor mãe, e da viscosidade e da temperatura da massa cozida, já que a temperatura tem grande influência sobre a viscosidade.
Supersaturação elevada proporciona altas taxas de cristalização, mas na prática não podemos exagerar pois há grande possibilidade de se produzir falso grão e o risco não compensa.
A pureza do licor mãe tem enorme influência sobre a taxa de cristalização, a qual cai rapidamente com a diminuição da pureza. A solubilidade da sacarose no licor mãe aumenta muito com a queda da pureza, o que causa a diminuição da taxa de cristalização. Em um cozimento A por exemplo, quando começamos com xarope de pureza 86%, a taxa de cristalização cai para menos da metade do seu valor inicial no final do cozimento quando a pureza do licor mãe cai para 74%, mantidos constantes temperatura da massa e supersaturação do licor.
A viscosidade da massa, além de ser influenciada pela temperatura, aumenta quando cai a pureza. Massas mais viscosas têm circulação mais dificultada, tornando mais difícil para a sacarose presente no licor mãe “encontrar” os cristais.
Por estas razões, tachos de refinaria que operam com altas purezas (e portanto com altas taxas de cristalização) têm relação S/V na faixa de 1:1. Tachos que operam com purezas mais baixas não necessitam de tanta superfície de aquecimento, pois não se consegue ganhar tempo de cozimento efetivamente. Naturalmente estamos falando de cozimentos com bom esgotamento, e não como ocorre em algumas usinas do Centro Sul onde se descarrega massa cozida com brix de 90% ou menos. Nestes casos a pureza do licor mãe continua relativamente alta, e tem-se a impressão de que se ganha em capacidade. Mas toda a sacarose que poderia ser cristalizada, na verdade não o foi. Um cozimento bem conduzido deveria em tese procurar chegar ao seu final com cerca de 60% da sacarose presente na forma de cristais (a percentagem dos cristais na massa vai depender logicamente do seu brix e da sua pureza). Nossos colegas do Nordeste, muito mais habituados a esgotar massa cozida, dão especial atenção ao fator tempo do cozimento, sabendo que não adianta querer dobrar a área de aquecimento do tacho para reduzir o tempo pela metade. Isto não funciona.
Alguns técnicos argumentam que tachos contínuos têm relação S/V de 1:1 ou ainda maior. É verdade, mas há um detalhe importante; os tachos contínuos operam com nível de massa cozida constante para uma dada capacidade, e portanto a relação S/V é igual desde o início até o fim da passagem da massa cozida pelo tacho. Um tacho a bateladas bem projetado tem um volume de pé de no máximo 33% e relação S/V digamos de 1:0,75. Portanto, quando iniciamos a alimentação de xarope ou de mel, esta relação S/V na prática é de 1:2,3, mais do que o dobro de um tacho contínuo. Continuamos a alimentação de xarope ou de mel e quando chegamos a 75% do volume do tacho, ainda temos uma relação S/V de 1:1. No quarto final do cozimento é que gradualmente chegamos ao valor de S/V de 1:0,75. Ocorre que nesta fase, quando temos que fazer o aperto da massa cozida, a alimentação de xarope ou mel tem que ser reduzida. Menor alimentação significa menor evaporação. Se estamos evaporando muito menos, porque necessitamos de mais área de aquecimento? Necessitamos de boa circulação, é lógico, o que no tacho contínuo é sempre possível obter porque a altura de massa cozida sobre o feixe tubular é sempre pequena. Mas no tacho a bateladas, se no final do cozimento queremos boa circulação para ganhar capacidade, a solução são circuladores mecânicos. Não se pode pretender ter boa circulação natural se a taxa de evaporação tem que ser baixa em decorrência da baixa taxa de cristalização.
Outros técnicos aumentam a relação S/V para poder operar com vapor de aquecimento a temperaturas mais baixas. Na nossa opinião não é a solução mais adequada. Menor temperatura do vapor vai significar menor troca de calor no feixe tubular, e portanto maior necessidade de área. Mas não devemos sacrificar o projeto de um bom tacho em função disto. Quando se deseja usar vapor mais baixo, devemos aumentar a capacidade de tachos bem projetados (maior número de tachos), exatamente a exemplo do que ocorre quando dimensionamos tachos contínuos para operar por exemplo com vapor a 90 – 100 C de temperatura ou quando dimensionamos aquecedores de caldo em maior número para operar com vapor V3.
Outra possibilidade para aumentar superfície sem aumentar dimensões externas é a utilização de tubos de 3″. É importante lembrar que esta solução provoca uma perda de carga muito maior na subida da massa cozida pelo feixe tubular. Um tacho de 400 hl com 300 m2 por exemplo tem uma área para subida da massa cozida de cerca de 7,1 m2 com tubos de 4″, e uma área de apenas 5,1 m2 com tubos de 3″ (27% a menos). Maior perda de carga significa menor circulação natural. Na prática não compensa.
Os tachos a bateladas bem projetados para usinas de cana devem levar em conta uma boa geometria para garantir boa circulação natural, volume de pé máximo de 33% e relação S/V na faixa de 1:0,75 com tubos de 4″ de comprimento máximo de 1000 mm. É muito difícil aumentar a relação S/V sem sacrificar o volume de pé. É muito difícil reduzir o volume de pé sem sacrificar a boa circulação natural. Se houver intenção de reduzir o tempo de cozimento durante a fase de aperto, a atitude correta é a instalação de circuladores mecânicos.
Quem gosta de grandes relações S/V são os fabricantes de tubos. Mas são relações perigosas para quem quer elaborar um bom projeto de tacho em bateladas.