Que Papelão!
Estivemos recentemente trocando idéias com um consultor sênior do setor de papel e celulose. Ele estava particularmente interessado no uso do bagaço de cana para a produção de papelão corrugado para embalagem, produto do qual o mercado brasileiro é carente.
As características do bagaço de cana fazem deste resíduo uma matéria prima de excelente qualidade para a produção de papelão corrugado. A estrutura da fibra do bagaço e o seu alto conteúdo de pentosanas dão a este material uma vantagem inerente que é a maior rigidez, uma propriedade obviamente importante na confecção de caixas para embalagens de produtos diversos (vide J. M. Paturau, By-Products of the Cane Sugar Industry).
A expansão atual da produção de cana visando o etanol carburante vai produzir enormes excedentes de bagaço. É nossa obrigação estudar e discutir as possibilidades disponíveis para o seu aproveitamento.
A utilização mais imediata, que inclusive estamos praticando com intensidade ultimamente, é a geração de excedentes de energia elétrica. É bem verdade que, nas inúmeras regiões do Brasil onde a cultura canavieira está se expandindo, muitas vezes a conexão com a rede elétrica é difícil ou anti-econômica, sendo necessário muito investimento governamental a priori. Mas quando a rede elétrica está próxima, a venda de energia elétrica é uma atividade que do ponto de vista tecnológico está perfeitamente equacionada, bastando estudar o nível de pressão de vapor mais conveniente. Para cada tonelada de bagaço excedente, podemos vender pelo menos 0,5 kW.h, o que, com base nos preços dos últimos leilões de energia, correspondente a um faturamento de R$ 70,00 / t de bagaço. Como o custo operacional é muito baixo, não deixa de ser um bom negócio para o empresário vender bagaço a este preço em regiões onde a procura por este material é praticamente inexistente. E a tendência no mercado de energia é este preço subir.
Entretanto, do ponto de vista técnico, gerar energia elétrica com um ciclo a vapor com condensação é um processo de muito baixa eficiência. Este ciclo tem uma eficiência da ordem de 35%, pois toda a energia térmica que entregamos ao condensador da turbina a vapor é depois desperdiçada nas torres de resfriamento que dissipam esta energia térmica para a atmosfera. Trata-se de um ciclo que podemos adotar em nosso setor unicamente porque o bagaço é um resíduo com um custo marginal muito baixo e com um preço de oportunidade que, dependendo da localização da usina, pode até ser negativo (teríamos que gastar dinheiro para que o bagaço não se torne um problema ambiental).
Para melhorar a eficiência deste ciclo visando aumentar a produção de energia a partir de bagaço excedente, estão sendo estudadas em muitos países duas rotas tecnológicas básicas: gaseificação e hidrólise.
A gaseificação do bagaço permite a utilização de ciclos térmicos combinados que são mais eficientes do que os sistemas convencionais a vapor. O gás produzido a partir da pirólise do bagaço pode passar por uma turbina a gás, sendo este ciclo denominado BIG/GT (Biomass Integradted Gasification / Gas Turbine). E os gases de combustão do escape da turbina podem ser usados para gerar vapor de alta pressão para acionar uma turbina a vapor, sendo este ciclo denominado BIG/GT CC (Combined Cicle). A gaseificação do bagaço pode também produzir o gás de síntese, a partir do qual seria possível produzir combustíveis líquidos sintéticos. Inclusive diesel e gasolina.
A hidrólise do bagaço permite separar a celulose, a hemicelulose e a lignina, que são os componentes principais da matéria seca do bagaço. A lignina pode ser empregada como um combustível para a geração parcial da energia necessária para o processo. Na continuação do processo a celulose é transformada principalmente em hexoses e a hemicelulose é transformada principalmente em pentoses. As hexoses podem ser fermentadas por fungos, como no processo tradicional para a produção de etanol, mas as pentoses são fermentadas apenas por bactérias, as quais devem ser especificamente desenvolvidas para esta finalidade. No Brasil, a Dedini vem desenvolvendo também há muito tempo um processo de hidrólise que utiliza o etanol como solvente e ácido sulfúrico como catalisador. Já existe uma planta piloto, mas ainda falta a comprovação econômica do processo, além da solução de alguns problemas tecnológicos.
Embora as duas rotas acima sejam tecnicamente possíveis, ainda não existem processos em escala comercial com tais tecnologias. Os especialistas acreditam que ainda possam passar de 10 a 15 anos para que tais tecnologias estejam maduras para comercialização. Ou talvez mais. Portanto, embora tenhamos que ficar atentos, não é possível adotar soluções deste tipo no momento.
Entretanto, procurar utilizar o bagaço como fonte de celulose para outras aplicações pode ser uma alternativa muito interessante para fugirmos do ciclo de muito baixa eficiência que é o ciclo a vapor com condensação.
Ao contrário das rotas acima mencionadas, a produção de papelão corrugado a partir de bagaço é uma tecnologia perfeitamente dominada e utilizada há muito tempo em outros países. Alguns exemplos de nosso conhecimento são a Colômbia e a África do Sul.
O consultor com quem conversamos admite que, para as condições do Brasil onde a celulose é relativamente barata, uma planta para produção de papelão corrugado deve ter uma capacidade mínima de 300 t/d para haver economia de escala. A umidade do produto acabado está na faixa de 6% a 8%, o que corresponde a cerca de 280 t/d de matéria seca (MS).
Normalmente o bagaço tem de 10 a 15% de medula (pith), material que deve ser separado previamente da fibra propriamente dita. Temos assim 85% de MS para ser processada. Com este material que vai para o processo, obtemos um rendimento da ordem de 70%. Portanto, da MS original obtemos cerca de 60% de produto acabado. Como o bagaço “in natura” tem uma umidade típica de 50%, vamos necessitar de aproximadamente 920 t/d de bagaço. Como a planta opera pelo menos 350 dias por ano, são cerca de 350.000 t / safra de bagaço excedente.
Este número define a escala mínima de usinas próximas que devem se unir no empreendimento. Admitindo que temos fibra para produzir 54% de vapor sobre a cana, e que a nossa usina vai consumir 40% de vapor sobre a cana, temos um excesso de vapor de 14% sobre a cana que transformado em bagaço resulta em 6,5% sobre a cana (relação de 2,2 kg vapor kg bagaço). Admitindo que a medula (pith) e mais 1,5% do bagaço são necessários para fornecer a energia para a nova planta, temos em excesso de 5% sobre a cana. E se dividirmos as 350.000 / 0,05 = 7.000.000 t de cana, chegamos ao tamanho da usina necessária para o empreendimento. Este valor é uma ordem de grandeza, que deve ser afinado com as reais necessidades energéticas da nova planta e com as eventuais possibilidades de se economizar mais bagaço.
É bom lembrar que este contingente de cana pode muito bem ser a soma dos contingentes de usinas próximas, no Centro Oeste do Brasil por exemplo, onde uma série de novas unidades de grande porte estão sendo implantadas.
Por outro lado, acreditamos que uma “joint venture” com empresas do setor de papel e celulose é indispensável. Nós temos a matéria prima barata e a energia de graça, mas eles dominam o processo e o mercado. Ir sozinho para o negócio pode ser arriscado para qualquer um dos dois lados.
Utilizar 350.000 t de bagaço em um ciclo de condensação significa vender mais ou menos 175.000 MW.h por safra. Com um preço de R$ 140 / MW.h temos um faturamento bruto de R$ 24,5 milhões.
O nosso consultor estima um preço de venda de R$ 700 / t de papelão corrugado. O faturamento anual da nova planta estaria na faixa de R$ 73,5 milhões. É lógico que o investimento seria muito maior do que para uma UTE para venda de energia. Estimamos que a planta de papelão possa custar cerca de R$ 180 milhões. Os custos operacionais também seriam muito mais altos, mas por outro lado estamos falando de um faturamento três vezes maior.
Novas unidades que estão distantes de linhas de transmissão podem ter neste produto uma alternativa de negócio muito interessante. É realmente um papelão demorarmos tanto tempo para começar a estudar este assunto com maior atenção. Mas pelo menos começamos.