Hidrogênio de Baixo Carbono - Rotas de Produção
Este texto foi redigido alguns dias após termos passado pelo terminal portuário industrial de Fusina, na Itália, onde nos deparamos com um navio em cujo costado podia-se ler em letras garrafais a seguinte informação: “Hybrid - Zero Emissions in Port”.
É um exemplo da estratégia da comunidade europeia que visa vender para o mundo a percepção de que eles vão eliminar todas as suas emissões ao longo das próximas décadas. Se aquele navio utilizar hidrogênio para as suas operações portuárias europeias e utilizar combustível fóssil nas rotas entre os portos, a informação no costado do navio continua sendo válida. Mas para o resto da humanidade o que realmente importa é a quantidade de emissões que foi necessária para viabilizar a utilização de hidrogênio naquele navio, pois no final das contas estamos todos no mesmo barco, o planeta Terra.
Esta situação naturalmente nos remeteu para o grande interesse dos europeus em importar o “hidrogênio verde” de países como o Brasil. Eles poderão assim continuar gravando o termo “Zero Emissions” nos seus produtos e nas suas atividades econômicas. Mas neste caso, qual seria o custo em geração de Gases de Efeito Estufa (GEE) ou em subsídios econômicos para o país exportador?
O hidrogênio, assim como a eletricidade, não são fontes energéticas primárias disponíveis na natureza, sendo necessário dispor de outras fontes de energia para serem produzidos, armazenados e transportados com o objetivo de transforma-los em outras formas de energia, o que inevitavelmente ocasiona a emissão de GEE.
Atualmente o hidrogênio utilizado nas atividades industriais ao redor do mundo é produzido a partir de petróleo, carvão e gás natural (GN), rotas de produção com maior emissão de GEE. O hidrogênio que tem despertado o interesse dos países desenvolvidos é aquele cuja rota de produção é a partir de fontes de energia renováveis, com menor nível de emissões. É o assim chamado Hidrogênio de Baixo Carbono (HBC).
Para diferenciar as diversas rotas de produção de hidrogênio várias cores tem sido adotadas. Quanto mais “limpo” o hidrogênio produzido, ou seja, com menos emissões de GEE na sua rota de produção, mais “ecológica” seria a sua cor correspondente. Daí o HBC ter recebido a cor verde como referência.
Ocorre que na prática dos contratos as cores não servem para definir a quantidade exata de redução de emissões quando substituímos uma fonte energética qualquer pelo hidrogênio de uma determinada cor.
Desta maneira, no lugar das cores, que definem uma comparação qualitativa, é mais adequado usarmos uma comparação quantitativa em função do nível de emissões de cada rota para a produção do hidrogênio. Esta quantidade de emissões passa a ser definida em valores de emissões de CO2 para uma unidade de hidrogênio produzido, ou seja, o parâmetro kgCO2/kgH2.
Usando como referência uma prática adotada nos Estados Unidos, lá eles consideram como “hidrogênio limpo”, ou HBC, aquele que emite até 4,0 kgCO2/kgH2 produzido. A título de comparação indicamos a seguir valores típicos de emissões para cada rota usada na produção de hidrogênio, de acordo com a publicação “Caderno do Hidrogênio da FGV ENERGIA”:
- Gaseificação de carvão: 24 kgCO2/kgH2
- Reforma catalítica do metano (GN): 11 kgCO2/kgH2
- Reforma catalítica do metano com 60% CCS (Carbon Capture Storage): 5,2 kgCO2/kgH2
- Reforma catalítica do metano com 90% CCS: 4,0 kgCO2/kgH2 (limite do hidrogênio limpo)
- Eletrólise com energia da rede elétrica considerando média mundial: 24 kgCO2/kgH2
- Eletrólise com energia da rede elétrica considerando média Brasil em 2022: 3,2 kgCO2/kgH2
Interessante notar que, a nível mundial, as emissões da rota com GN (sem CCS) correspondem a cerca da metade das emissões da rota com eletrólise da rede elétrica. Na rota com GN a matéria prima corresponde a cerca de 60% do custo de produção (depende mais do preço do gás), e na rota com eletrólise a energia elétrica corresponde a cerca de 70% do custo de produção (depende mais do preço da energia).
Como a energia elétrica produzida no Brasil é muito mais limpa do que a média mundial, os europeus tem todo o interesse em produzir HBC aqui utilizando eletrólise, pagando um preço muito baixo pela nossa energia elétrica renovável, que por seu lado tem as fontes renováveis intermitentes (solar e eólica) muito subsidiadas por todos os consumidores brasileiros de menor renda (vide texto da Revista STAB da edição janeiro/fevereiro/março de 2024 - Transição Energética: Mitos e Fatos).
Mas além de usar energia elétrica barata, os europeus também tem interesse em fornecer toda a tecnologia e os sistemas industriais que seriam indispensáveis para a produção, o armazenamento e o transporte do HBC que seria produzido aqui, já que o hidrogênio tem características muito peculiares.
Os parâmetros importantes para se comparar a eficiência do armazenamento e do transporte de combustíveis diversos são a densidade energética gravimétrica (energia contida numa unidade de massa) e a densidade energética volumétrica (energia contida numa unidade de volume).
Do ponto de vista da densidade gravimétrica o hidrogênio é superior a todos os outros combustíveis. Uma dada massa de hidrogênio armazena cerca de 2,7 vezes mais energia do que a mesma massa de óleo diesel. Mas do ponto de vista da densidade volumétrica o hidrogênio apresenta dificuldades notáveis para o seu armazenamento e transporte. Um dado volume de óleo diesel armazena cerca de 10 vezes mais energia do que o mesmo volume de hidrogênio gasoso já comprimido a 350 bar.
Assim para ser armazenado e transportado o hidrogênio deve ser comprimido até 700 bar ou ser liquefeito a uma temperatura de -253 oC. Liquefeito o hidrogênio ocupa menor volume, mas a energia parasita associada à liquefação é cerca de 15 vezes maior do que aquela associada à compressão. Ambas alternativas, compressão ou liquefação, demandam altos investimentos e critérios muito rigorosos com relação à segurança operacional dos sistemas necessários para transportar o hidrogênio em longas distâncias, que obviamente não podem ser atendidas por gasodutos.
O hidrogênio na prática funciona mais ou menos como o bagaço de cana, nosso velho conhecido. A geração de energia a partir do bagaço é tanto mais eficiente quanto menos se armazena e se transporta este material, ou seja, ele deve ser utilizado assim que é produzido visando a geração de energia com máxima eficácia.
O texto da FGV ENERGIA acima citado também discorre sobre o uso da amônia e do metanol como possíveis carreadores de hidrogênio, mas curiosamente apenas nas referências menciona o etanol para esta mesma finalidade. A referência em questão é sobre a primeira planta piloto a ser instalada na USP para a produção de hidrogênio utilizando a reforma do etanol de cana ou de milho, conforme o link:
A rota de produção de HBC a partir da reforma catalítica do etanol deverá ser devidamente estudada levando em conta as condições e os interesses específicos do Brasil. Será melhor para o Brasil exportar HBC produzido por eletrólise, pagando os elevados custos de armazenamento e de transporte com tecnologia importada? Ou será melhor exportar etanol com tecnologia brasileira para os europeus produzirem HBC em instalações industrias próximas dos seus portos, com menores custos de armazenamento e de transporte?
É necessário ressaltar que todo o etanol produzido no Brasil, seja de cana, de milho ou em plantas anexas que utilizam as duas matérias primas, utiliza combustível renovável (biomassa) e sistemas de cogeração que não utilizam energia elétrica da rede. Sistemas de cogeração tem maior eficiência energética e assim operam com menor emissão específica de GEE.
Naturalmente não podemos a priori ser contra a rota de produção de hidrogênio a partir da eletrólise, mas neste caso a energia elétrica necessária não poderia ser vendida com base no seu custo, pois a energia das nossas UHE`s, que na prática compensa a intermitência da energia solar e da energia eólica, tem baixo custo. A energia elétrica para a eletrólise deveria ser vendida com base no seu preço, porque uma energia renovável com baixa emissão de GEE não pode ser barata, deve levar em conta no seu preço um “green premium”.
Caso o HBC seja produzido no Brasil, no lugar de exportá-lo não seria melhor procurar utilizá-lo na indústria local com a eventual exportação de produtos com “selo “verde”? Este é o dilema que temos que resolver, sempre em busca de maiores vantagens para o nosso país (vide texto da Revista STAB da edição julho/agosto/setembro de 2023 - Energia Renovável do Brasil: Nortear ou Orientar?).