Energia Elétrica a Partir da Vinhaça
Este é um tema que frequentemente vem à tona quando estamos discutindo os critérios de projeto para a implantação de novas unidades industriais, principalmente quando o cliente quer maximizar a venda de energia elétrica. Vale a pena pensar neste aproveitamento, com os preços de energia elétrica apresentando tendência de alta?
A vinhaça proveniente da produção do etanol de cana é um efluente líquido com grande potencial de poluição. Este potencial é caracterizado basicamente pela sua carga orgânica, avaliado pela sua demanda química de oxigênio (DQO), e pelo seu teor de potássio. O potássio é um elemento que praticamente não participa das reações físico químicas durante o processamento da cana de açúcar. Desta maneira, o potássio que se encontra na cana acaba saindo todo na vinhaça, seja o etanol produzido de caldo, de mel ou de uma combinação entre os dois. O que pode variar é a sua concentração, em função da quantidade de vinhaça produzida por litro de etanol, mas ele estará todo lá.
Quando a vinhaça é aplicada na lavoura, o seu teor de potássio é determinante no cálculo das máximas taxas de aplicação por hectare por ano. A DQO não é relevante, desde que não ocorra infiltração até o lençol freático, pois a matéria orgânica disposta no solo será aproveitada pela soqueira da cana.
Quando a vinhaça passa por um tratamento de digestão anaeróbica, pode haver uma remoção de DQO da ordem de 80% a 90% no máximo. Novamente o potássio não participa das reações, e o potássio que entra é o potássio que sai do reator. Como o teor de potássio não se altera e a DQO na saída ainda é alta para disposição do efluente na natureza, este tratamento não pode se viabilizar como um sistema de controle de poluição. Portanto, o tratamento somente é viável, principalmente no Brasil, se a energia produzida pagar o investimento e os custos operacionais.
A fonte de energia é principalmente o gás metano, contido no biogás proveniente da digestão anaeróbica da vinhaça. A digestão anaeróbica é proporcionada por bactérias adequadamente selecionadas e adaptadas ao efluente e ao meio reinante no interior do reator. A maior parte da DQO é convertida, e o lodo resultante da reação (cerca de 1,5% a 2,5% do efluente na entrada) deve ser removido do reator e adequadamente disposto, como outros resíduos. Pode também ser vendido a um preço de aproximadamente R$ 60,00/t, pois hoje o mercado de lodo ativado é comprador.
Há basicamente dois tipos de bactérias usadas nos reatores. As bactérias mesofílicas operam com temperatura na faixa de 35 a 37 C, e as termofílicas na faixa de 55 a 57 C. O bom controle da temperatura é crucial para a boa eficiência do processo. Além da temperatura, o controle do pH é também importante. No início do processo, como o pH da vinhaça é muito baixo e as bactérias trabalham em meio basicamente neutro, é necessário usar soda ou outro alcalinizante para neutralizar o meio. Como os reatores trabalham sempre com altas taxas de recirculação, à medida que o processo avança o consumo de alcalinizante decresce rapidamente.
Para definir o processo o projetista precisa encarar duas tarefas imprescindíveis. É preciso procurar caracterizar adequadamente o efluente em questão e é preciso procurar determinar, com testes piloto, a taxa de remoção de DQO esperada e as características do biogás produzido.
A correta caracterização do efluente é indispensável para qualquer projeto. Fabricantes como a Dedini por exemplo, que já forneceu inúmeros reatores para a indústria cervejeira, tem um grande banco de dados a respeito da vinhaça. Entretanto, para usinas que produzem açúcar e que utilizam enxofre no processo, conhecer o teor de gás sulfídrico (H2S) no biogás resultante é também indispensável para determinar a necessidade de tratamento antes do seu uso. Alto teor de H2S no biogás pode exigir, por exemplo, motores de combustão interna com materiais especiais, que são muito mais caros. Ou pode provocar corrosão indesejável nos recuperadores de calor das caldeiras.
No Brasil a vinhaça tem DQO na faixa de 20 a 25 kg/m3 (proveniente de fermentação com caldo) e de 30 a 35 kg/m3 (fermentação de caldo e mel). Como se diz na indústria, DQO no efluente significa produto perdido. Neste caso, a DQO mais alta em vinhaça de mel significa que parte dos açucares redutores se transformou em açúcares infermentescíveis durante o processamento para a produção de açúcar, o que em última análise são perdas industriais.
Existem vários tipos de reatores para a digestão anaeróbica. Em todos os casos o desafio da engenharia é sempre procurar homogeneizar o meio ao máximo, para proporcionar que as bactérias entrem em contato com a matéria orgânica, que é a sua fonte de sobrevivência.
Lagoas anaeróbicas, com profundidade na faixa de 4 a 6 m, podem ser usadas e devem ser revestidas com geomembrana à base de PAD e também cobertas pelo mesmo material, para a coleta do biogás. São reatores que exigem grandes volumes, pois a taxa de aplicação (TA) varia de 2 a 3 kg DQO/m3/dia. Grandes volumes dificultam a homogeneização do meio e podem criar caminhos preferenciais, reduzindo a taxa de conversão de DQO. Como as membranas não suportam pressões internas sem vazamentos, necessitam de sistemas de exaustores para remoção do biogás. Usam bactérias mesofílicas, operando na temperatura de 36 C, mas mesmo assim o controle da temperatura é dificultado em função dos grandes volumes que devem ser homogeneizados.
Reatores tipo UASB (Up-flow Anaerobic Sludge Blanket) utilizam bactérias termofílicas, operando na temperatura de 56 C, e são desenhados para operar com uma TA na faixa de 8 a 10 kg DQO/m3/dia. É o tipo de reator que se encontra em operação na Usina São Martinho, processando cerca de 10% da vinhaça produzida e gerando a energia necessária para a secagem de levedura.
Reatores tipo IC (Internal Circulation) utilizam bactérias mesofílicas, operando com temperatura de 36 C, e são desenhados para uma TA de 25 a 30 kg DQO/m3/dia. Os volumes se reduzem drasticamente, principalmente pelo recurso da utilização do próprio biogás gerado para a homogeneização do meio. Podem operar com pressão interna suficiente para bombear o biogás para as etapas seguintes do processo. São tipicamente usados em cervejarias, para fins de controle de poluição.
Para avaliarmos o potencial energético de uma planta deste tipo, é possível exemplificar a situação típica de uma planta produzindo somente etanol, conforme indicado a seguir:
- Produção típica de etanol/cana: 0,090 m3/t
- Produção típica de vinhaça/etanol: 10/1
- DQO típica da vinhaça: 20 kg/m3
- Produção típica de DQO/cana: 18 kg/t
- Taxa de remoção de DQO no reator: 85%
- Produção de biogás: 0,35 a 0,40 Nm3/kg DQO removido
- Concentração média de metano no biogás: 60% a 80%
- Produção típica de metano: 0,26 Nm3/kg DQO
- Produção específica de metano/cana: 4,7 Nm3/t
- Poder calorífico inferior do metano: 34450 kJ/Nm3
- Equivalência com bagaço (PCI = 7325 kJ/kg): 4,7 kg de bagaço / Nm3 de metano
- Bagaço adicional equivalente % cana: 2,2%
- Bagaço % cana típico: 26,5%
- Acréscimo percentual, expresso em bagaço, proporcionado pelo metano: 8,3%
- Geração adicional em ciclo de vapor (68 bar / 520 C) com turbina de condensação: 12,7 kW.h/tc
- Geração adicional em motores de combustão interna de ciclo Otto: 17,1 kW.h/tc
O metano produzido pode ser basicamente queimado em caldeiras para geração de vapor ou em motores de combustão interna.
Caso seja queimado em caldeiras, estamos falando de um ciclo de condensação, pois não haveria consumo de vapor de processo. Trata-se de um ciclo com baixa eficiência, da ordem de 30% apenas. Com um sistema regenerativo, com tomadas na turbina de condensação para o prévio aquecimento do condensado, geramos cerca de 0,50 kW.h/t de bagaço. Portanto, com o uso do metano em caldeira, estaríamos produzindo um adicional de cerca de 12,7 kW.h/t cana. Embora a eficiência de recuperação de energia seja mais baixa, a vantagem é que os equipamentos (caldeira e turbina de condensação) já estariam disponíveis.
Caso seja queimado em motores de combustão interna de boa eficiência, podemos atingir eficiências de até 38% na geração de energia elétrica. Portanto, com o uso do metano em motores, estaríamos produzindo um adicional de cerca de 17,1 kW.h/t cana. Estes motores perdem cerca de 22% da energia primária do combustível em resfriamento de água e de óleo, e cerca de 40% nos gases de combustão. Assim, embora exista um investimento adicional nos motores, pode-se pensar no aproveitamento do calor destes gases, que estão a cerca de 400 C, para secagem de levedura ou para produção de água gelada, criando-se um ciclo de maior eficiência do que o ciclo de condensação.
Procuramos obter os custos de instalação dos equipamentos. Os digestores anaeróbicos tipo IC completos, inclusive com o sistema para eliminação do H2S, custam de R$ 85,00 a R$ 95,00 por kg de DQO aplicada por dia. Os motores de combustão interna custam de R$ 1.700,00 a R$ 2.000,00 por kW instalado, inclusive com o sistema de torres de resfriamento para o circuito de água.
Os custos de operação da caldeira e da turbina de condensação são conhecidos. Os custos de operação dos motores devem ser bem avaliados, pois são equipamentos que usam muito óleo lubrificante e filtros. Os custos de operação de digestores anaeróbicos estão estimados entre R$ 0,016 a R$ 0,018 por kg de DQO aplicada, mas é preciso confirmar com o fabricante, pois os insumos podem variar muito de uma tecnologia para outra. O custo total de operação da planta com motores de combustão interna anda ao redor de R$ 40,00 / MW.h.
É importante lembrar que, em todos os casos, é preciso descontar a energia parasita, representada pelos equipamentos auxiliares tais como exaustores, bombas, torres de resfriamento, etc. Deve estar na faixa de aproximadamente 10%.
Agora é fazer contas e, em função do preço de venda da energia elétrica, verificar se compensa.
Queremos agradecer ao engenheiro Sérgio Luiz Ferreira, pelas oportunas informações de caráter prático a respeito da operação deste tipo de planta.